O CAMINHO
INTERROMPIDO DE
LINARDO, SUA CARTA E SUA DESTINATÁRIA
I
Sonhos em
uma cidade fantástica
“Quando
a noite empardece de verdade, vou e me mando pelo sonho. Navego... Se existe
algo que eu gosto nessa vida é sonhar, porque o sonho é ímpeto até o âmago.
Ímpeto, ímpeto, ímpeto!”
(Trecho
de uma carta achada em uma estação de trem.)
Algo me ofusca e num abrir e
fechar de olhos sou pássaro: copas de árvores, claraboias, casas, prédios, viadutos
estão lá embaixo. De repente mergulho e estou na cidade. Flutuo por uma avenida
aquática. Estou no subterrâneo da cidade e passo por viadutos enormes. Não sei quem sou. Olho para
meus pés. Pés? Não sou mais ave, nem sou peixe. Sou bípede. Vejo a escadaria de
uma casa simplória. Subo até ingressar nela. Um bar, sebo ou igreja?
Ouço sons de cânticos. Um padre
quer informar o preço do dicionário de sonhos ou qualquer obra de Freud. Ao seu
lado um vendedor recita salmos. Diz fazer parte da normalidade deste mundo e eu
já o aceitava quando, com jeito de entendedor, o moço do bar teoriza acerca de
um livro e um visitante cita todas as possíveis cores escuras. Então o padre,
sem permeios e com voz monomaníaca, diz: "Se não fôssemos irracionais,
veríamos todos os tons de preto na noite, sagrado generoso fim do
mundo..." e sorrindo faz o sinal da
cruz. Entendo e agradeço, mesmo pedindo o preço, a bênção ou talvez a
assistência de algum empregado do sebo.
Era corriqueiro agradecer e
emocionar-se no sonho. Em sua vida normal, porém, Linardo não tinha ligação
emocional alguma com as pessoas. Quando agradecia, fazia-o por obrigação. No
mundo onírico as sensações eram intensas, na realidade vivia dentro de sombras.
Seus vizinhos e parentes não
entendiam, porém não sentiam antipatia por Linardo. O seu jeito fechado era
estranho, mas isso já se tornara familiar a todos. Há algum tempo permanecia em
casa e não saía à rua, pois não achava importantes as transferências diminutas
de conhecimento.
Sozinho, escrevia a carta. Era
manhã e a luz do sol cortava o ar em feixes diagonais. Não saía da cama, às
vezes caía novamente no sono, encostado no travesseiro. Outras vezes deixava o
seu olhar passar pelas coisas ao redor.
Por fim, levantava-se e fazia o café.
"Essa carta não vale nada,
porque é uma confissão tola e sem necessidade", dizia. Porém, não
conseguia parar de escrevê-la. Não a mandaria, não repartiria seu amor com o
rosto que olhava da foto sobre a mesa: a sua destinatária. Mas como parar de
escrever a carta? Se havia se acostumado à sua presença morna e aconchegante como
café com biscoito de tardezinha, era melhor que continuasse assim.
II
O ímpeto
(Rascunho de carta encontrada no lixo.)
Linardo passeava pela avenida,
sujo, vestido com várias camadas de roupas e trapos. Com as mãos no lixo,
procurava alimento. Perambulava entre uma e outra estação de trem.
Veículos pesados passavam sobre
alicerces de concreto. Carros, ônibus e caminhões. As vibrações causadas pelo
peso dos grandes caminhões não paravam. Era andando entre os viadutos enormes
da cidade que sentiu algo diferente. Uma tontura? Um ímpeto? Um ímpeto
estonteante!
Decidiu morar ali, debaixo do
viaduto. Armou uma barraca. Saía pouco. Não precisava, pois o padre aparecia
todos os dias. Cheio de compaixão, rezava por sua alma negra. De vez em quando
passava também o vendedor do sebo. Trazia livros e papel. Já o pessoal do bar
começou a faltar. Morria de fome quando a chuva subiu e invadiu sua tenda.
Assim, cada vez mais, Linardo
procurava refúgio na carta. Com a caneta que roubou do bar, escrevia algumas
linhas. Dias e mais dias se passaram, até que se sentiu fraco demais para escrever.
Onde estava? Não sabia. Reparou nas pessoas ao redor. Nos seus olhos e rostos
os passantes transmitiam algum sentimento. Pensamentos se mesclavam à humildade
e consolo. Esse mar de humanidade o invadiu de imediato. Por fim, sentia algo
que pensava não existir!
Surpreso, retornou à carta.
Contrariado, perguntou-se: "O que ela significava há um minuto e o que ela
representa agora?" Sentiu ódio. A raiva se apoderou de seu corpo. Agarrou
o papel com furor. Tentou apagar as letras, arranhando-as com as mãos sujas. Em
vão. Quis rasgar os papéis, mas não teve forças. Avistou uma lixeira e gritou
heureca. Porém, quando tentou jogar a carta, primeiro não pôde levantar suas
mãos. Depois, viu-se em espasmos, impossibilitado de largá-la. Com cãibra nas
mãos, agoniado, achou que alguma cola não o deixava largar seus escritos.
Exausto, descansou.
Mais tarde passava pela roleta
da estação. A água espirrou em seus pés. Numa sensação de paramnésia, levantou
a carta, a fim de não molhá-la. Notando o ridículo da situação, pulou. Já que
saltitava, tentou borrar o escrito fazendo espirrar mais água para cima.
Encharcou-se inteiro. Os passantes riram dele, mas a carta ainda estava em suas
mãos, intacta. Podia ler tudo, linha por linha. Com o corpo anestesiado e
febril, deitou-se.
As pessoas aguardavam pelo trem
e Linardo estava ali. Segurava a carta como um cantor de tango arrasta seu bandoneón pela dor e a loucura. Entrava
e saía dos trens. Sentava-se no chão. Pedia esmolas. Pensou em escrever, cego,
uma nova carta invisível, que não lhe ficasse como penduricalho. Começou a
recitá-la. Clamou pelos túneis seus lamentos, e pessoas foram ouvindo. Ficou
conhecido em algumas linhas de trem como o mendigo da carta.
Era carnaval. Quando entrou num
trem, este acelerou de tal forma que uma garrafa vazia rolou até parar ante
seus pés. Levantou e analisou o objeto de vidro. Com a direita enrolou a carta
e introduziu-a no invólucro. O padre, que entrara junto com ele, o segurou e
levantou com ambas as mãos: "Pague uma, leve duas, é dez por cento de
desconto, quem vai levar?" Benzeu-a frente a todos os leitores desavisados
do sebo, fez uma cópia que mandou autenticar e guardar em um arquivo com a
inscrição “Bíblia”. Quando o trem atravessava um trecho com a lateral aberta,
Linardo avistou, entre pilastras, uma baía num pôr de sol de chorar de
saudades. Arremessou a garrafa pela janela. Um barulho que vinha de longe se
tornou ensurdecedor, quando a porta automática do trem se abriu. Um bloco de
carnaval entrou. Brincava com a turma, como há muito tempo não o fazia, sentia-se
animado. Quando um pierrô o beijou a testa, ele arriscou sambar. Ao sair pela
porta, o palhaço tirou a peruca e uma vasta cabeleira apareceu. A porta se
fechou. O trem continuou correndo pelo fundo da cidade.
Mesmo não mais trazendo a carta
consigo, continuou a recitá-la. Fazia-o pelas estações, pelos corredores dos
trens, pelas praias, nas avenidas, enfim onde gente se encontrava. Incrementou
a história sobre um mendigo e um pierrô. Depois de algum tempo o povo já o
conhecia sob o apelido de “Pierrô”.
Da primeira vez lhe pareceu mais
uma miragem de sua cidade aquática a ser ignorada: espalhadas por diversas
estações, depois pelas ruas, pela cidade inteira, havia cópias encadernadas da
carta abertas à leitura de todos. Sem titubear, foi arrancando tudo que
encontrou. Já em estado de estafa, achou ao final de um dia de muito trabalho
uma localidade pela qual já passara. Nela havia novas fotocópias. Era uma luta
injusta: se recolhia aqui, novas edições já apareciam ali. Alguém as espalhava.
Não se sabe quanto tempo depois,
estava passeando numa rua quando viu um caixote. Dentro deste, a cópia de sua
carta. Correu e achou no outro lado da rua alguém manuseando pincel e cola. Uma
mulher. Ele atravessava a rua, mas um
carro veio, desviou dele e acertou o corpo dela. Correu para salvá-la. Os primeiros socorros
apareceram e logo depois a ambulância a levou para o hospital. Ele ficou ali,
não disseram aonde a levariam, muito menos pensaram em trazê-lo junto. A carta,
na calçada, em centenas de cópias, exalava um forte perfume e calava.
No início era assim: o silêncio.
Ele não podia pensar. Às vezes vinha a imagem dela. Aquele “pierrô louco”.
Talvez estivesse em coma, sonhando profundo. Tentou achá-la em alguns
hospitais, mas ninguém informou ao
mendigo se um pierrô ali estaria ou qual era o seu estado de saúde. As
enfermeiras chamavam o serviço de segurança para deter o mendigo. Ele era
levado até a porta e essa se fechava.
III
O futuro
O que
terá acontecido contigo? Amanhã, com gosto de Deus, será outro dia. Ainda hei
de postar aquelas palavras que deixei de te dizer. E aquilo que não aconteceu
haverá de vir.
(Rascunho
de carta encontrada no lixo.)
Durante algum tempo, Linardo
fora dado como perdido. Ao ver um mendigo, seu amigo Tomás pensou que ele se
assemelhava muito com alguém conhecido. Só se lembrou de quem depois de chegar
em casa. Gustavo, ao ouvir essa história, não acreditou. Para ele, Linardo
estava em Machu Picchu ou em Berlim. "Deve estar se picando por aí, saca?
Com certeza um caso perdido. Além disso, esse mendigo puxava o erre que nem
Linardo?" Tomás balançou a cabeça: "Não". E pensativo, deu uma
forte puxada no cigarro de folha de seda.
Seus pais pensavam em diversas
versões para o seu paradeiro. Quando sua tia falou a seu pai que vira alguém
muito parecido a Linardo numa estação, renovaram-se as esperanças. Ela
reconhecera a voz e perguntou quando voltaria para casa. O mendigo nada mais
fez além de silenciar e a ignorou. Ela não conseguia imaginar Linardo assim e
também não enxergava bem. Por isso foi buscar seu filho, que trabalhava na viação,
para tirar a prova e trazer Linardo para casa. Mas, de volta à estação, não o
encontraram. Em casa, comentou o fato. Os detalhes do paradeiro de seu filho foram
demais para seu pai e o deixaram desgostoso. "Meu filho, mendigando?"
Ele voltou aos seus afazeres, sem pensar em procurar por ele.
Linardo preferia ficar à
paisana. Afinal, ninguém reconhece desconhecidos nesse mundo mesmo. E um
mendigo é sempre um desconhecido. Era prazeroso ser reconhecido e confortante
ver o rosto de seus amigos e familiares mudar de feição em poucos segundos:
partindo de surpreso e esperançoso, passando por reticente, incerto, até chegar
à frieza, à tristeza ou simplesmente a alguma mímica de desmerecimento. Ria
depois de irem embora.
Para não voltar a encontrar
família ou amigos, mudou de cidade. Lá arranjou um emprego: escrevia textos,
frases e poemas. Poderia ser uma congratulação, uma carta bem redigida
encomendada por um amante ou amigo ou mesmo um slogan para confeitaria.
Habitava nos arredores de uma estação de trem. Não mais o chão duro, tinha um
quarto simples, com cama arrumada, roupa limpa, todas as refeições inclusive.
Nenhuma mordomia, uma vida menos marginal. Já aparentava o Linardo de
antigamente e ninguém havia por perto que o pudesse reconhecer.
Naquele momento havia pouco a
fazer. Era novamente carnaval e o movimento estava fraco. Tinha acabado uma
curta redação romântica, que seria lida pelo padre em um casamento debaixo
d'água. “Esses loucos!”, pensava, "o importante é que pagam bem". Foi
quando um par de muletas se postou à sua frente. Olhou para cima e viu uma
moça. “Você poderia me ajudar a atravessar a rua?” Suas mãos, agora livres de
epístolas, espasmos e medos, sentiram as mãos dela. Era pierrô, a mulher
acidentada, aquela que copiava a carta que ele tanto recitou pela cidade! Ela
beijou a sua testa, como naquele dia no metrô. Choraram juntos.
Logo tomariam juntos chá de jasmim
no apartamento dela. O bairro era cheio de casas com jardins, portões, muros e
árvores grandes. Na varanda do prédio de arquitetura interessante floriam
bonitas acácias. "Você nunca me acharia em São Paulo. Logo depois que
melhorei um pouco, minha família me transferiu para o hospital daqui do Rio.
Que época louca", disse. E sorrindo lhe pediu: "Me conta como você
chegou aqui?" Ele explicou como conheceu um caminhoneiro e quantas horas
demorou para sair da maior cidade da América do Sul, pela Marginal...
Sandra, a jovem que o salvou da
loucura e da miséria, esteve um mês ainda em recuperação. Passaram-se alguns meses e ele estaria
novamente no mesmo apartamento, mas desta vez como morador. A mudança foi
minúscula, não havia juntado quase nada na pensão que habitara.
Depois casaram-se. Uns anos se passaram e ele se tornou um
profissional na área de publicidade. Cria slogans e escreve textos que trazem
sucesso, impulsionando as vendas de diversos produtos. Aclamado com prêmios,
pensa dedicar-se à literatura infantil.
Ela pensa em ter filhos. Não hoje. Trabalha na criação de propaganda,
amando e administrando Linardo. São um par perfeito, pelo menos para as
revistas e as colunas sociais.
Uma noite saíram para festejar
em uma discoteca VIP mais uma campanha bem sucedida. Danças alegres, ritmos
frenéticos, o par tinha força e frisson unidos, sem nunca faltar glamour. Ao
lado de Linardo e Sandra, seus colegas e amigos precisavam se esforçar muito
para brilhar e mesmo assim não pareciam alcançá-los. Os dois eram de uma
alegria verdadeira, diziam os desfalcados de inveja. Mas todos acabavam
concordando que era o casal perfeito. Aproveitando uma pausa do DJ, foram em
direção ao bar, para recarregar. Uma taça de champanhe seria o brinde ideal.
Lânguida, ela se acomodou no
balcão e o mirava fixamente, quando ele se deparou com uma garrafa. Não a
reconheceu de imediato, mas sim seu conteúdo, depois de achar sua carta. Em um
jato a sua memória lhe devolveu o passado nada remoto. "Preciso de ar
fresco", disse. Olhou para o balcão, um vestido elegante preto lhe chamou
a atenção. Grávida, a moça da carta, que limpava copos, obcecada, contava:
"preto-carmim, preto-ocre, azul-marinho escuro..."
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