14 de abril de 2008

O CAMINHO INTERROMPIDO DE LINARDO, SUA CARTA E SUA DESTINATÁRIA

O CAMINHO INTERROMPIDO DE LINARDO, SUA CARTA E SUA DESTINATÁRIA
I
Sonhos em uma cidade fantástica
 
“Quando a noite empardece de verdade, vou e me mando pelo sonho. Navego... Se existe algo que eu gosto nessa vida é sonhar, porque o sonho é ímpeto até o âmago. Ímpeto, ímpeto, ímpeto!”
(Trecho de uma carta achada em uma estação de trem.)

Algo me ofusca e num abrir e fechar de olhos sou pássaro: copas de árvores, claraboias, casas, prédios, viadutos estão lá embaixo. De repente mergulho e estou na cidade. Flutuo por uma avenida aquática. Estou no subterrâneo da cidade e passo por  viadutos enormes. Não sei quem sou. Olho para meus pés. Pés? Não sou mais ave, nem sou peixe. Sou bípede. Vejo a escadaria de uma casa simplória. Subo até ingressar nela. Um bar, sebo ou igreja?
Ouço sons de cânticos. Um padre quer informar o preço do dicionário de sonhos ou qualquer obra de Freud. Ao seu lado um vendedor recita salmos. Diz fazer parte da normalidade deste mundo e eu já o aceitava quando, com jeito de entendedor, o moço do bar teoriza acerca de um livro e um visitante cita todas as possíveis cores escuras. Então o padre, sem permeios e com voz monomaníaca, diz: "Se não fôssemos irracionais, veríamos todos os tons de preto na noite, sagrado generoso fim do mundo..."  e sorrindo faz o sinal da cruz. Entendo e agradeço, mesmo pedindo o preço, a bênção ou talvez a assistência de algum empregado do sebo. 
Era corriqueiro agradecer e emocionar-se no sonho. Em sua vida normal, porém, Linardo não tinha ligação emocional alguma com as pessoas. Quando agradecia, fazia-o por obrigação. No mundo onírico as sensações eram intensas, na realidade vivia dentro de sombras.
Seus vizinhos e parentes não entendiam, porém não sentiam antipatia por Linardo. O seu jeito fechado era estranho, mas isso já se tornara familiar a todos. Há algum tempo permanecia em casa e não saía à rua, pois não achava importantes as transferências diminutas de conhecimento.
Sozinho, escrevia a carta. Era manhã e a luz do sol cortava o ar em feixes diagonais. Não saía da cama, às vezes caía novamente no sono, encostado no travesseiro. Outras vezes deixava o seu olhar passar pelas coisas ao redor.  Por fim, levantava-se e fazia o café.
"Essa carta não vale nada, porque é uma confissão tola e sem necessidade", dizia. Porém, não conseguia parar de escrevê-la. Não a mandaria, não repartiria seu amor com o rosto que olhava da foto sobre a mesa: a sua destinatária. Mas como parar de escrever a carta? Se havia se acostumado à sua presença morna e aconchegante como café com biscoito de tardezinha, era melhor que continuasse assim.
 


II
O ímpeto
 

“Sonho contigo como se saísse de uma porta sobre mim, um alçapão. Nesse outro acabo sonhando ou vivendo. E ali você se encontra, largado no nada. Eu vou embora sonhar a realidade ou entro em sua casa.”
(Rascunho de carta encontrada no lixo.)

Linardo passeava pela avenida, sujo, vestido com várias camadas de roupas e trapos. Com as mãos no lixo, procurava alimento. Perambulava entre uma e outra estação de trem.
Veículos pesados passavam sobre alicerces de concreto. Carros, ônibus e caminhões. As vibrações causadas pelo peso dos grandes caminhões não paravam. Era andando entre os viadutos enormes da cidade que sentiu algo diferente. Uma tontura? Um ímpeto? Um ímpeto estonteante!
Decidiu morar ali, debaixo do viaduto. Armou uma barraca. Saía pouco. Não precisava, pois o padre aparecia todos os dias. Cheio de compaixão, rezava por sua alma negra. De vez em quando passava também o vendedor do sebo. Trazia livros e papel. Já o pessoal do bar começou a faltar. Morria de fome quando a chuva subiu e invadiu sua tenda.
Assim, cada vez mais, Linardo procurava refúgio na carta. Com a caneta que roubou do bar, escrevia algumas linhas. Dias e mais dias se passaram, até que se sentiu fraco demais para escrever. Onde estava? Não sabia. Reparou nas pessoas ao redor. Nos seus olhos e rostos os passantes transmitiam algum sentimento. Pensamentos se mesclavam à humildade e consolo. Esse mar de humanidade o invadiu de imediato. Por fim, sentia algo que pensava não existir!
Surpreso, retornou à carta. Contrariado, perguntou-se: "O que ela significava há um minuto e o que ela representa agora?" Sentiu ódio. A raiva se apoderou de seu corpo. Agarrou o papel com furor. Tentou apagar as letras, arranhando-as com as mãos sujas. Em vão. Quis rasgar os papéis, mas não teve forças. Avistou uma lixeira e gritou heureca. Porém, quando tentou jogar a carta, primeiro não pôde levantar suas mãos. Depois, viu-se em espasmos, impossibilitado de largá-la. Com cãibra nas mãos, agoniado, achou que alguma cola não o deixava largar seus escritos. Exausto, descansou.
Mais tarde passava pela roleta da estação. A água espirrou em seus pés. Numa sensação de paramnésia, levantou a carta, a fim de não molhá-la. Notando o ridículo da situação, pulou. Já que saltitava, tentou borrar o escrito fazendo espirrar mais água para cima. Encharcou-se inteiro. Os passantes riram dele, mas a carta ainda estava em suas mãos, intacta. Podia ler tudo, linha por linha. Com o corpo anestesiado e febril, deitou-se.
As pessoas aguardavam pelo trem e Linardo estava ali. Segurava a carta como um cantor de tango arrasta seu bandoneón pela dor e a loucura. Entrava e saía dos trens. Sentava-se no chão. Pedia esmolas. Pensou em escrever, cego, uma nova carta invisível, que não lhe ficasse como penduricalho. Começou a recitá-la. Clamou pelos túneis seus lamentos, e pessoas foram ouvindo. Ficou conhecido em algumas linhas de trem como o mendigo da carta.
Era carnaval. Quando entrou num trem, este acelerou de tal forma que uma garrafa vazia rolou até parar ante seus pés. Levantou e analisou o objeto de vidro. Com a direita enrolou a carta e introduziu-a no invólucro. O padre, que entrara junto com ele, o segurou e levantou com ambas as mãos: "Pague uma, leve duas, é dez por cento de desconto, quem vai levar?" Benzeu-a frente a todos os leitores desavisados do sebo, fez uma cópia que mandou autenticar e guardar em um arquivo com a inscrição “Bíblia”. Quando o trem atravessava um trecho com a lateral aberta, Linardo avistou, entre pilastras, uma baía num pôr de sol de chorar de saudades. Arremessou a garrafa pela janela. Um barulho que vinha de longe se tornou ensurdecedor, quando a porta automática do trem se abriu. Um bloco de carnaval entrou. Brincava com a turma, como há muito tempo não o fazia, sentia-se animado. Quando um pierrô o beijou a testa, ele arriscou sambar. Ao sair pela porta, o palhaço tirou a peruca e uma vasta cabeleira apareceu. A porta se fechou. O trem continuou correndo pelo fundo da cidade.
Mesmo não mais trazendo a carta consigo, continuou a recitá-la. Fazia-o pelas estações, pelos corredores dos trens, pelas praias, nas avenidas, enfim onde gente se encontrava. Incrementou a história sobre um mendigo e um pierrô. Depois de algum tempo o povo já o conhecia sob o apelido de “Pierrô”.
Da primeira vez lhe pareceu mais uma miragem de sua cidade aquática a ser ignorada: espalhadas por diversas estações, depois pelas ruas, pela cidade inteira, havia cópias encadernadas da carta abertas à leitura de todos. Sem titubear, foi arrancando tudo que encontrou. Já em estado de estafa, achou ao final de um dia de muito trabalho uma localidade pela qual já passara. Nela havia novas fotocópias. Era uma luta injusta: se recolhia aqui, novas edições já apareciam ali.  Alguém as espalhava.
Não se sabe quanto tempo depois, estava passeando numa rua quando viu um caixote. Dentro deste, a cópia de sua carta. Correu e achou no outro lado da rua alguém manuseando pincel e cola. Uma mulher.  Ele atravessava a rua, mas um carro veio, desviou dele e acertou o corpo dela.  Correu para salvá-la. Os primeiros socorros apareceram e logo depois a ambulância a levou para o hospital. Ele ficou ali, não disseram aonde a levariam, muito menos pensaram em trazê-lo junto. A carta, na calçada, em centenas de cópias, exalava um forte perfume e calava.
No início era assim: o silêncio. Ele não podia pensar. Às vezes vinha a imagem dela. Aquele “pierrô louco”. Talvez estivesse em coma, sonhando profundo. Tentou achá-la em alguns hospitais, mas ninguém  informou ao mendigo se um pierrô ali estaria ou qual era o seu estado de saúde. As enfermeiras chamavam o serviço de segurança para deter o mendigo. Ele era levado até a porta e essa se fechava.



III
O futuro

O que terá acontecido contigo? Amanhã, com gosto de Deus, será outro dia. Ainda hei de postar aquelas palavras que deixei de te dizer. E aquilo que não aconteceu haverá de vir.
(Rascunho de carta encontrada no lixo.)

Durante algum tempo, Linardo fora dado como perdido. Ao ver um mendigo, seu amigo Tomás pensou que ele se assemelhava muito com alguém conhecido. Só se lembrou de quem depois de chegar em casa. Gustavo, ao ouvir essa história, não acreditou. Para ele, Linardo estava em Machu Picchu ou em Berlim. "Deve estar se picando por aí, saca? Com certeza um caso perdido. Além disso, esse mendigo puxava o erre que nem Linardo?" Tomás balançou a cabeça: "Não". E pensativo, deu uma forte puxada no cigarro de folha de seda.
Seus pais pensavam em diversas versões para o seu paradeiro. Quando sua tia falou a seu pai que vira alguém muito parecido a Linardo numa estação, renovaram-se as esperanças. Ela reconhecera a voz e perguntou quando voltaria para casa. O mendigo nada mais fez além de silenciar e a ignorou. Ela não conseguia imaginar Linardo assim e também não enxergava bem. Por isso foi buscar seu filho, que trabalhava na viação, para tirar a prova e trazer Linardo para casa. Mas, de volta à estação, não o encontraram. Em casa, comentou o fato. Os detalhes do paradeiro de seu filho foram demais para seu pai e o deixaram desgostoso. "Meu filho, mendigando?" Ele voltou aos seus afazeres, sem pensar em procurar por ele.
Linardo preferia ficar à paisana. Afinal, ninguém reconhece desconhecidos nesse mundo mesmo. E um mendigo é sempre um desconhecido. Era prazeroso ser reconhecido e confortante ver o rosto de seus amigos e familiares mudar de feição em poucos segundos: partindo de surpreso e esperançoso, passando por reticente, incerto, até chegar à frieza, à tristeza ou simplesmente a alguma mímica de desmerecimento. Ria depois de irem embora.
Para não voltar a encontrar família ou amigos, mudou de cidade. Lá arranjou um emprego: escrevia textos, frases e poemas. Poderia ser uma congratulação, uma carta bem redigida encomendada por um amante ou amigo ou mesmo um slogan para confeitaria. Habitava nos arredores de uma estação de trem. Não mais o chão duro, tinha um quarto simples, com cama arrumada, roupa limpa, todas as refeições inclusive. Nenhuma mordomia, uma vida menos marginal. Já aparentava o Linardo de antigamente e ninguém havia por perto que o pudesse reconhecer.
Naquele momento havia pouco a fazer. Era novamente carnaval e o movimento estava fraco. Tinha acabado uma curta redação romântica, que seria lida pelo padre em um casamento debaixo d'água. “Esses loucos!”, pensava, "o importante é que pagam bem". Foi quando um par de muletas se postou à sua frente. Olhou para cima e viu uma moça. “Você poderia me ajudar a atravessar a rua?” Suas mãos, agora livres de epístolas, espasmos e medos, sentiram as mãos dela. Era pierrô, a mulher acidentada, aquela que copiava a carta que ele tanto recitou pela cidade! Ela beijou a sua testa, como naquele dia no metrô. Choraram juntos.
Logo tomariam juntos chá de jasmim no apartamento dela. O bairro era cheio de casas com jardins, portões, muros e árvores grandes. Na varanda do prédio de arquitetura interessante floriam bonitas acácias. "Você nunca me acharia em São Paulo. Logo depois que melhorei um pouco, minha família me transferiu para o hospital daqui do Rio. Que época louca", disse. E sorrindo lhe pediu: "Me conta como você chegou aqui?" Ele explicou como conheceu um caminhoneiro e quantas horas demorou para sair da maior cidade da América do Sul, pela Marginal...
Sandra, a jovem que o salvou da loucura e da miséria, esteve um mês ainda em recuperação.  Passaram-se alguns meses e ele estaria novamente no mesmo apartamento, mas desta vez como morador. A mudança foi minúscula, não havia juntado quase nada na pensão que habitara.
Depois casaram-se.  Uns anos se passaram e ele se tornou um profissional na área de publicidade. Cria slogans e escreve textos que trazem sucesso, impulsionando as vendas de diversos produtos. Aclamado com prêmios, pensa dedicar-se à literatura infantil.  Ela pensa em ter filhos. Não hoje. Trabalha na criação de propaganda, amando e administrando Linardo. São um par perfeito, pelo menos para as revistas e as colunas sociais.
Uma noite saíram para festejar em uma discoteca VIP mais uma campanha bem sucedida. Danças alegres, ritmos frenéticos, o par tinha força e frisson unidos, sem nunca faltar glamour. Ao lado de Linardo e Sandra, seus colegas e amigos precisavam se esforçar muito para brilhar e mesmo assim não pareciam alcançá-los. Os dois eram de uma alegria verdadeira, diziam os desfalcados de inveja. Mas todos acabavam concordando que era o casal perfeito. Aproveitando uma pausa do DJ, foram em direção ao bar, para recarregar. Uma taça de champanhe seria o brinde ideal.
Lânguida, ela se acomodou no balcão e o mirava fixamente, quando ele se deparou com uma garrafa. Não a reconheceu de imediato, mas sim seu conteúdo, depois de achar sua carta. Em um jato a sua memória lhe devolveu o passado nada remoto. "Preciso de ar fresco", disse. Olhou para o balcão, um vestido elegante preto lhe chamou a atenção. Grávida, a moça da carta, que limpava copos, obcecada, contava: "preto-carmim, preto-ocre, azul-marinho escuro..."
Navios passam pela baía. Uns entram no cais e descarregam. Outros se vão, com novas mercadorias, para o alto mar. É preciso circundar embarcações encalhadas, presas a sedimentos. Cuidado. À noite a maré irá soltar esses navios-fantasmas, que voltarão a navegar, sem direção.

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