Lembro-me de um amigo secreto. Na verdade, do meu único amigo secreto em toda minha vida. Sim, talvez foi o primeiro e o último.
Estava na segunda série do primário e tinha paixão por uma loirinha chamada Carla. Ela era minha "namorada" secreta. Ninguém sabia. E se sabia, também não é de meu conhecimento hoje, 28 anos mais tarde.
Era hora de cada um tirar o seu amigo secreto. A professora, com jeitinho português, escreveu em diversos bilhetinhos o nome de cada um e espalhou os pedacinhos de papel fechados sobre a mesa. Ela chamava um por um em ordem alfabética. Carla tirou o nome de seu amigo secreto. Pediu para tirar de novo, pensando poder tirar sua amiga. A professora disse que não era assim que funcionava. Carla olhou a mesa e escolheu um papelzinho, fosse o de sua amiga? Leu e fez cara feia e balançou o corpo. Não gostou e pediu para tirar outro. A professora - acho que se chamava Lucélia ou Lúcia - falou que não era assim, e que ela se comportasse. Carla jogou o papelzinho no lixo, ralhando como uma arara. Quando perguntaram quem era seu amigo secreto, ela apontou com o dedo para mim.
A chamada da professora passou o E,F, G ... chegou no T e o U veio direto pra mim, minha vez de tirar o bilhetinho. Havia vários bilhetinhos ainda sobre a mesa... por que isso? Não foi alfabética a ordem? Ou tinham juntado diversas classes? Timidamente puxei um bilhete e o entreguei para a professora. Ela sorriu e me mostrou o nome. CARLA. Ela havia me tirado e agora eu a tirei. Fiquei sem entender direito.
Dia da entrega de presentes. Havia sido um ano diferente para mim. Tudo novo: cidade nova, novos amigos... e com sete anos a gente espera ser aceito por tudo e todos. Nem sempre dei certo com meu sotaque de gaúcho e meu jeito enfezado. Amigos tinha. Mas queria muito mais uma namorada.
Desde o início queria uma namorada. Quando havia chegado em São Paulo, fiquei morando na Avenida Morumbi, logo defronte a um semáforo, na casa de uma tia. Os carros arrancavam e faziam um barulhão. Tinha uma vizinha com uns anos a mais que eu. Era linda. Coisinha branquinha com olhinhos cor de qualquer coisa boa. Eram castanhos. Olhinhos que ficavam bem naquela sombra de árvore do pátio. Um dia ela me perguntou do outro lado do muro como se chamava algo em alemão. Eu perguntei o que ela queria saber, não me vinha nenhuma palavra assim, de sopetão. Ela pediu: hm... fogão! Eu havia me esquecido de meu vocabulário alemão, desci da cadeira e fui para casa perguntar pra minha mãe. OFEN? Notei que sabia a palavra, mas que de tanto querer impressionar, tinha me esquecido...
Tinham me proibido de subir na escada ou na cadeira: sujava a cadeira e a escada era perigosa, podia cair e quebrar a cabeça. Pulei para o alto algumas vezes para verificar se ela estava do outro lado do muro. Não estava. Voltei para casa e pedi se podia usar o telefone. Pra quê, quiseram saber. Quero ligar pra vizinha. O quê? Não pode, disse minha mãe. A tia interveniu dizendo que podia e já foi me dando o número. E ordenou que eu falasse "você" e deixasse o "tu" de lado. Disquei o número, me achando o máximo. Ela atendeu, acho que se achou o máximo também, "o sobrinho da vizinha está ligando pra mim". Fiquei misturando tu e você a torto e a direito. Já falava uma meia hora quando meu primo, impaciente, apareceu e brincou, se eu já tinha marcado um encontro, pois precisava usar o telefone - ou ia ficar caro. Final de conversa: não marquei encontro, nem vi mais os olhos da vizinha. A mudança tinha enfim chegado e nós íamos poder entrar na casa nova. E lá não tinha telefone. Ah sim. Eu queria ter uma namorada. Uma que fosse assim, minha vizinha, bonitinha, pra ficar ligando e falando. Uma pra fazer de conta que eu sabia falar alemão...
Então era dia da entrega de presentes. Fim de ano, fim daquele mesmo ano. Disse a meu pai que precisava ser um presente, não disse o preço, só falei que era pra uma guria. Menina. Mädchen. Lá foi ele todo alegre comprar presente. "Ele tá podendo", pensei, quando vi a boneca. Comprou uma bonequinha bonitinha mesmo. Até mais bonita do que aquela que deu pra Elaine. Elaine, minha prima de segundo grau, que antes disso tinha como boneca um sabugo de milho com pano de saco comprido, para fazer as vezes de saia. Ele adorava dar boneca para minhas amigas. E eu até achava chato.
O dia de entrega dos presentes, sim. Eu fiquei no meu canto, a caixa da boneca escondida num saco. Durante toda a preparação, não tinha deixado nenhum recado para meu amigo secreto. Brincadeira besta, ficar deixando recado pra amigo secreto... Já que ela não gostava de mim, não precisava brincar nem nada. Ia contar o que? Que meu pai adorava dar bonequinha? Perguntar se ela sabia que em outros lugares se brincava com sabugo de milho? Sua riquinha, você sabia como é cacho de uva, como é tirar leite de vaca e como um chiqueiro fede? Sabe como é ter saudades? Mas ela era burguesa? Ela era mais rica que a mocinha negra que tinha um barrigão, barriga d'água e que tinha medo de um cara tão branco quanto eu. Carla devia ter dinheiro, sua mãe a levava de carro e ela era loira. Ah, ela comia lanche, a mãe dela dava dinheiro pra um lanche e um refri. Gente loira geralmente tem dinheiro. Não é que nem esse pessoal, que não tem dinheiro para o café da manhã, vêm. Não que eu jantasse, pois em casa sempre tivemos lanche de noite, às 6 da tarde e depois mais nada.
Carla veio com uma amiga. Ela ficara sabendo que eu era seu amigo. Secreto agora já não era mais. Veio em minha direção e me levantei. Afinal, os pais já vinham buscar seus filhos e a brincadeira do amigo secreto estava acabando. A fantasia caíra. Bastava ficar ali parado. Tinha de entregar o presente. Quase que me esquecia! Tirei a caixa de dentro da mesa e a entreguei dizendo "taí". A amiga dela, uma que parecia com a Lady Diana e que eu também achava linda, mas muito produzida, adorou e soltou um gritinho. Carla não entendeu de onde surgira aquela boneca e me entregou algo, seu presente.
Dezembro chove às vezes um pouco frio em São Paulo. Principalmente quando não se toma café da manhã, nem se prova nada da festinha de despedida de ano. Meu pai me buscou e quis saber como foi, o que eu ganhei. Mostrei a caixa de bis. Ele perguntou se podia pegar um. Puxei a caixinha e fiz que não e perguntei se podia comer antes do almoço. Ele falou que eu podia fazer o que eu queria e ligou o motor do Passat. Dei uma mordida.
4 comentários:
"Haja o que houver, eu estou aqui"
lindo esse som, lindo seu texto... derreteram meu coração, só não me tiraram da minha geleira... acho q por isso choro!
opa! Lembraças da infância... nada melhor.
E essa caixinha de bis foi o melhor sabor.
Nossas histórias se repetem. Aconteceu comigo examente parecido.
Gostei.
beijo...Ingrid
Carla era uma boa guria na minha oitava série..
Muito interessante a forma como você retratou as percepções de infância. Conseguiu fazer um texto sobre pessoas normais em situações corriqueiras, mas contadas de maneira instigante. Legal!
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