BLOG DE PROSA DE UDO BAINGO. PERSONAGENS, TEXTOS, CONTOS, NOVELAS REGISTRADOS NA BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL.
29 de dezembro de 2011
O OGRO SOLITÁRIO
Os cascos batem contra o assoalho de madeira. Mancando, puxo as correntes entre as pernas gordas e sujas de graxa. Dou fungadas intercaladas de assovios e grunhidos. Resmungo. Sou eu o ser que faz esses sons estranhos no andar de cima.
Solto lamentos por cada incapacidade, desânimo ou desmerecimento seu, sou quem fabrica as suas crises de enxaqueca e injeta catarro em seus pulmões, enche de manchas de bolor os seus cômodos.
Engendro automatismos maléficos que corroem o seu agir e pensar. Insemino cotidianamente mau-humor e agonia em seus dias.
A mulher que não há, os filhos que nem existem.
Nada lhe ajuda mais. Você é a má reputação em pessoa. Ninguém vem lhe ver, ninguém quer que você entregue cartas. Seus pombos-correios sem cabeça, a foto da esposa que tanto quis, tudo isso disposto no baú desse sótão. Não é necessário dizer para não beber da água do poço. Já nem pensa em limpar e as defuntas ratazanas cobrem toda a água.
Sim, eu sei, você quer me ver. Entre pela porta do sótão, vem ver a vista daqui de cima. Por sobre as copas de árvores, mesmo que desfolhadas, dessas florestas fechadas, a fumaça das chaminés nos vales ao horizonte. Idílico, não? Depois, dê uma olhada do que guardou no baú do tempo. Ainda jura alguma coisa? Pobre velho! Não há mais nada a querer! Nada mais que lembranças, amargadas pelo
tempo!
Espere, o que quer fazer? Não seja tonto! Para onde aponta? Você não é capaz de
apertar o gatilho, uma vez que sou o seu próprio orgulho. Sei à mirra, sou um bálsamo
para o seu ser. Somente eu posso mudar o curso de sua vida. Somente eu sei onde se
esconde a sua vontade.
Um momento. O que quer no espelho?
Onde você foi? Precisamos falar... Volte, as velhas lembranças tão guardadas, só para
você...
Um tiro chicoteou o ar e vibrou pelas paredes, ecoando pela canalização da chaminé.
Mais tarde, um corvo muito esquecido se interessava pelo resto de calor que
emanava da chaminé quando o homem saiu da casa. Bem agasalhado para o rigoroso
inverno, com uma mochila de andarilho, ele mancou pelo caminho do jardim branco e
saiu pelo portão. Agora o corvo pôde ver: ele tinha uma corrente nos pés.
A neve alta e a corrente não deixaram o ogro solitário chegar tão rápido à sua
próxima vítima. Mas ele não tardará, sabia o corvo.
Não havia ninguém no caminho da floresta. Começou a chover. O ogro parou, abriu
sua mochila, tirou dali os olhos do suicidado. Ingeriu-os e viu. Viu um pequeno pedaço
de caminho para outra casa.
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3 comentários:
Schön, Interessant!
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