BLOG DE PROSA DE UDO BAINGO. PERSONAGENS, TEXTOS, CONTOS, NOVELAS REGISTRADOS NA BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL.
16 de setembro de 2011
O IMERSO OUTRO
Fim de semana. Sobre o sofá a caixa preta: a máquina do tempo, um presente de um amigo.
Joca acordara indisposto naquele sábado e não sabia se havia tido sexo. Geralmente tinha todos os dias com Peter, seu namorado, no horário de almoço. Conheciam-se há tanto tempo, que já não sabiam dizer nada de especial ao outro.
Na falta de disposição, acordado demais, Joca decidiu ir até a janela. O algodão dos álamos voava entre as casas da rua. Acendeu um cigarro, fumou-o.
Acabou acordando Peter e lhe disse:
— Peter... Peter... Hoje acordei com uma vontade danada.
Com sono, ainda não entendendo, o outro questionou:
— Por que hoje? Fodemos durante anos e anos e você nunca disse estar com vontade.
Não era o jeito de Peter e Joca fez ares de gracioso, queria beijar Peter, passar a mão, mas este encolheu e quis saber o motivo daquela vontade de danar.
— Você tem um outro?
O homem com uma vontade danada, não sabendo o que dizer, calou-se. Mas, depois de alguns segundos, retrucou:
— Você... tem um outro?
Ensaiando sair da cama, Peter buscou ar e disse:
— Tenho.
Depois de um instante, constatou:
— Ele é o meu amor consumado e nunca havia me dito de acordar com uma vontade danada. Não parece ser esse aí com quem eu estou conversando agora...
Joca, atordoado, perguntou:
— O que devo fazer para provar que eu sou o seu outro?
— Dê duas piruetas no ar e vomite, respondeu Peter desinteressado.
— Ih, mas que humor. Pra que isso?
— Ah, não fala mais nada. Você me mata com o seu tesão.
— Mas... assim é: Eu te amo...
Peter pegou o maço vermelho de cigarros, fisgou um e o acendeu. Baforejou fumaça azul pelo quarto. Joca, ainda sem entender, relampejou talvez haver se esquecido de alguma data importante e esse ser o motivo do outro estar chateado com ele. Esquivou-se:
— Desculpa, eu me esqueci que dia era hoje...
— Nem precisa gastar o seu latim com isso, hoje é um dia normal, como todos os outros. Só que você não é o meu outro. Nem nunca será.
Entender o motivo pelo qual o seu amado estava assim era uma tarefa árdua. Joca não queria brigar com ele, pois não era seu jeito. Nunca havia brigado assim com Peter. Apenas alguns desentendimentos no início do relacionamento haviam sujado o manto lívio de sua vida praticamente conjugal. No entanto, agora ambos sentiam um gosto amargo do prazer, da disputa e da diferença.
Joca acendeu um cigarro – e talvez outro. Avistou os álamos, através da janela, por detrás das nuvens de algodão. Olhou para dentro da moradia. Peter, não está mais aqui. A parede branca. A caixa escura sobre o sofá. A máquina do tempo. Baforejou uma fumaça lilás em direção à parede branca e desligou a máquina do tempo. Com tudo parado, poderia fazer concernimentos mais profundos.
„Se ele não me quer por eu não ser o seu outro, como pude perder o meu tempo, minha virgindade, meus planos e o meu futuro por ele?“
Os olhos dele escureceram e o ódio venceu o amor. Agarrou a garrafa de vinho que beberam na noite anterior, jogou-a contra a parede e enquanto o outro perguntava o que era isso, saltou do quarto pela janela. A queda demorou alguns segundos. „...estou apenas acordando, venha a mim... um-dois-três...“
Querer demais pode levar ao inimaginável. Ambos olhavam o firmamento, deitados sobre a areia. Areia fofa de praia. Um avião corta o céu. Paisagens do futuro passavam pelas cabeças de ambos.
Planejamento e paixão. Meio-dia. Joca oferece alface e toca o rosto de Peter com os lábios. Este retribui o carinho. Tarde. Todo o desejo, todo o presente de dias de prazer rompidos em sussurros e gritos... o primeiro beijo naquela primeira parada do ônibus para Salvador. As próximas paradas e o gozo cada vez mais crescendo dentro de suas calças. Anoiteceu. Os corpos roçando debaixo da coberta enquanto o ônibus percorre a rodovia em direção norte. Dias e mais dias sobre a areia, o sal e o sol queimando os seus corpos. Madrugada. Debaixo da areia, passa o tempo na ampulheta.
Dentro da areia, passa o tempo na ampulheta. A areia transpassa o seu tempo na ampulheta. O tempo, o tempo... Joca deixou a máquina do tempo funcionar. Não que o quisesse. Sua respiração agora já não havia.
Joca: pedaço de retalho no chão. Joca da Silva. Joca dos Três Poderes! O absoluto, político, empreendedor de uma agência de publicidade e o santo que todos um dia queriam comer! Mesmo havendo sobrevivido à queda com algumas fraturas que não eram letais, morreu segundos após, com o golpe do corpo de seu interlocutor caindo sobre si. Os dois corpos ficaram fundidos por algumas horas no pavimento. O último ainda vegetou por uns dias no hospital, vindo a falecer devido a uma intoxicação. Peter, beberrão. Peter, chefe da empreiteira. Peter, pai de uma ou duas filhas.
Aos funerais que se seguiram compareceu, calado e entre o choro de muitos, o terceiro personagem desta história. Este „outro“, ao qual ambos se referiram em seus questionamentos no dia em que se suicidaram, antes de retornar à sua casa, tocou a campainha da casa da família de Joca. Queria buscar a máquina do tempo.
— Oi, sou amigo de infância do Joca.
— Por favor, entre.
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