8 de setembro de 2011

O AMOR IRREVERENTE


 
 
Burdon era mago de verdade e tinha a solidão como par. E nada mais queria. Trabalhar lhe dava o dinheiro necessário para poder ser mago. Achava importante enriquecer e gostava de estar de noite na cidade. Assim como se recolhia nos bosques de dia.

Naquele dia o mago saltou do metrô e saudou: „Olá, como vai? E John? Mande recordações a ele, sim?“

A reação atônita da pequena Marjorie, a promessa de dar as lembranças, a porta do metrô fechando-se, este continuando sua rota: tudo isto aconteceu diante das reverências exageradas de Burdon, cartola na mão, na qual seu coelho aparecia.

Era dia de apresentação, ele pensou. A casa estaria lotada. O mago estudara os truques e para o caso de esses não darem certo, guardara outros números rápidos para executar com o coelho. Magia verdadeira sempre vinga, pensou.

Na vista mareada se misturavam as últimas cenas com as coisas sem importância que passavam no túnel subterrâneo do metrô. Burdon! Ela se lembrou de seu nome e acordou do sonho que sonhava acordada. Lembrou-se então dos detalhes: há um mês atrás, no pub, troca de olhares. Bebiam vinho de maçã junto aos amigos. Quando a terceira rodada de copos vinha no antebraço musculoso da garçonete, o coelho saltou da cartola de Burdon, ganhando os aplausos de todos. Os ruídos das mesas cheias cobriam suas vozes. Ninguém reparou nos dois. Mais tarde um grupo de jovens alcoolizados seria visto saudando-se com muita festa. Entre eles, Burdon e Marjorie. A risada alegre dela ecoava pelas aléias e pátios marrons. Bem-querer, e os corpos dançando à luz noturna. E hoje, o que sobrou disso tudo? Recordações a John! Mal sabe esse mago idiota que John nunca foi meu namorado! Ah Marjorie! A indecisão era maior que tudo em Burdon!

Era manhã e ele estava numa padaria a tomar o desjejum. Ela o viu se chegar como um fantasma. Vendo Marjorie passar, cumprimentou-a: „Olá? Onde vai? E John?“ Depois de um momento ela disse ser impossível falar de John, não seria sua companheira, nem nunca havia sido. Burdon pediu desculpas emudecendo. Não gostava de diálogos e deixou Marjorie. Fugiu, sem nada dizer. Era de manhã. Marjorie foi vista atrás dele. Talvez uma sombra matutina distante dele, por entre pátios universitários e árvores grandes? Ela fazia jogatinas sobre qual direção ele tomaria. Via o coelho chamando. Poemas arpejavam em melodias douradas pelas sombras e nuanças de dias de sol vividos em jardins ingleses.

De tanto brincar, numa esquina perdeu o amado. Já era tarde quando sentiu mais uma vez que o amava. O mago, invísivel, proclamou que viveria sempre à noite e desejou que Marjorie fizesse magia neste estilo longe dele. Sentenciou a si, que magia não combinava com amor e que ademais amor só atrapalha o artista que se prezava. Ela nem procurava mais e ficou no seu canto, a chorar: de ofegante a sua respiração se tornou lenta, indiferente.

Sonhos e realidade se mesclavam sem mais haver diferenças. Ela não sabia mais se era amanhecer ou fim de tarde quando o havia visto pela última vez. Não sabia onde foi que se desencontraram. Não pensava nem na razão. Ela era só vontade. Às vezes revolta.

Holofote girando na apresentação do grande mago Burdon! Entraram os passos estudados, suas mãos estavam rápidas e sagazes, seus movimentos não podiam ser desvendados. Nos primeiros números, apesar do nervosismo, tudo correu bem. Então no quinto número um pequeno imprevisto. Depois um escorregão. O mago percebeu que praticamente todos da fileira da frente o notaram e, perplexo, apelou para os “truques do coelho”. Sempre dão certo!, pensou. Mas desta vez, ó azar, qual foi a sua perplexidade, não achando o pequenino na cartola! A magia lhe disse adeus e a platéia era só vaias. Logo ouviu as queixas do chefe e se foi. Pro olho da rua, seu mago de meia-tigela!

No quarto de Marjorie pedras perfumadas, sutil iluminação new age e trilha sonora de desenhos animados. O coelho demorou a ser reconhecido, parecendo se esconder na parede de bichos de pelúcia. Por fim conseguiu chamar a atenção, mordiscando Marjorie. Saiu janela afora e ela o seguiu pelas travessas e ruas de Soldempdon, dentro do metrô e ônibus, o povo a chamando louca-olha-por-onde-anda, até chegar num bosque.

Era meio-dia e numa clareira Burdon lamentava a perda do coelho, quando a reconheceu. Ela se deitou e o arranjou sobre seu ombro. Tocaram as mãos sem apagar a luz do sol. Apenas uma cornucópia cresceu em ramos sobre suas cabeças.



 Revisão Vana Comissoli.
Todos Direitos Reservados ao Autor Udo Baingo.

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