26 de setembro de 2011

O PEIXE QUE UIVAVA


O PEIXE QUE UIVAVA

            Ele foi visto pela primeira vez na noite em que a chuva torrencial começou. Ninguém sabia de quem era, de onde viera – se dos lados da lagoa insólita ou da rodovia da mesmice. Ora ia em direção da lagoa, ora virava-se e tomava o rumo oposto, para a rodovia.
A reação ao vira-lata era nula, pois se esperava que ele um dia seguisse o rumo para um dos lados e acabasse qual um cachorro como muitos outros da lagoa ou um cadáver para a fome dos urubus. Por ele continuar ali na cidade, uns poucos até o condenaram. Mas, estando todos no rumo que a vida toma, nos afazeres diários ou em direção de suas casas, chegando a algum encontro importante não-se-sabe-para-quê, as condenações não passaram de uma ou outra frase sem maior importância. Vira-lata é mais coisa do que ser vivo. De modo que, ignorado, soube ignorar, mostrando sua língua salivante e um tanto suja de terra ferruginosa.
Quando a chuva forte chegou, todos os transeuntes sumiram, a fim de se salvarem. Assim, tudo ficou ainda mais fácil para o cachorro. Ele decidiu se plantar no meio da rua e aguardar o fim da torrente. Enrolou-se em torno de si e ficou imóvel.
Choveu sete anos ao todo. Comecei a marcar no meu calendário quando notei que das paredes de casa começaram a aparecer pingos condensados. E os dias se foram, lentos, mas convictos.
Ao final das chuvas, pouco tempo ficou para tristes pensamentos. Pouco tempo para o luxo de pensar em si. Todos averiguavam os danos causados. As casas abandonadas que antigamente tinham armários, janelas, persianas, agora tinham peixes mortos, cadáveres de marrecos e garças. Onde antes um tapete simples, agora lama e terra.
E poucos viram o cachorro levantar a cabeça, olhar para trás, como a espreguiçar-se. Depois,  à direita e à esquerda, observou. Havia valas em ambos os lados da rua, por onde o rio de água turva correu carcomendo o pavimento, e dessa forma protegendo o cachorro da enchente. Ali, no meio da cidade e no centro da rua, ele ficara intacto. À margem de tudo, pois ninguém mais o notava, tomados que estavam todos pelos cuidados com seus pertences deixados nas casas ou o que a chuva abandonou para contar história.
Foi a família Piero, do circo que pegara fogo no verão antes das chuvas, que primeiro se atentou ao fato dos pelos do cachorro terem caído durante o chuvaréu. As crianças, cheias da tragédia dos adultos, prontamente começaram a passar suas mãos na pele canina, brincando com ele. Ele não apenas estava sem pelos, mas também com outro tipo de pele. Eram escamas.
Atrás das crianças, alguns adultos viram o cachorro. Para a surpresa de todos, quando ele se levantou e se espreguiçou, mostraram-se barbatanas entre os membros e o dorso; e ao receber um prato com água, para beber, ele fez movimentos de boca como um peixe e pulou para dentro.
Quando as forças do Exército vieram com mantimentos e foram consertar provisoriamente o pavimento das estradas, ficaram sabendo da novidade. Acabaram achando-o em uma apresentação de circo: "o peixe que sabe uivar". Ficou claro que o tal peixe era um fenômeno biológico. Ele seria um prato cheio, pensavam os cientistas, e todos já se perguntavam quando iriam capturá-lo, fazer experimentos, gravar o DNA e todas essas coisas.
Foi Tchuí Piero, o caçula do circo, quem, cheio de medo, largou por fim o peixe no rio: melhor entregá-lo à natureza, do que às revistas de biologia e às catacumbas de espécies, pensou. A partir desse dia não se viu mais o cachorro-peixe. Só nas noites se ouvia o seu misterioso uivado. Até que um dia um publicitário o achou em um site de relacionamentos.

24 de setembro de 2011

PRELÚDIO E FUGA SOBRE PÓS-MODERNIDADE

Prelúdio e fuga sobre pós-modernidade

Prelúdio:
Probabilidade. Oportunidade. Eis a obscuridade. Onde está a certeza? E o desejo, fogo? Querer. Gostar. Amar. Acontecer? A certeza! O colorido virou preto & branco e nas fotos momentos, segredos em mim. Mas não existe mais do que consciência objetiva.
Passado. Todas as visões, todos os espíritos e as probabilidades têm forma. Que as deixe ser, como se houvessem sido removidas as partes de um inteiro constantemente. Desligue-se do objetivo e penetre na crítica para o mais humano, meu ser!

Fuga:
Tema Desenvolvimento Compassos intercalados Ecos de calor abafado sonhos fritando Minha mente rodopia Significante riacho Meus braços são curtos demais para segurar o rio-mar sonoro que corre com todas as cores todas as dores todos os amores todos... célere o contraponto aponta ao plano físico além do plano físico além do plano físico Significado

16 de setembro de 2011

O IMERSO OUTRO


Fim de semana. Sobre o sofá a caixa preta: a máquina do tempo, um presente de um amigo. 
 Joca acordara indisposto naquele sábado e não sabia se havia tido sexo. Geralmente tinha todos os dias com Peter, seu namorado, no horário de almoço. Conheciam-se há tanto tempo, que já não sabiam dizer nada de especial ao outro.
 Na falta de disposição, acordado demais, Joca decidiu ir até a janela. O algodão dos álamos voava entre as casas da rua. Acendeu um cigarro, fumou-o.
 Acabou acordando Peter e lhe disse:
 — Peter... Peter... Hoje acordei com uma vontade danada.
 Com sono, ainda não entendendo, o outro questionou: 
 — Por que hoje? Fodemos durante anos e anos e você nunca disse estar com vontade.
 Não era o jeito de Peter e Joca fez ares de gracioso, queria beijar Peter, passar a mão, mas este encolheu e quis saber o motivo daquela vontade de danar.
 — Você tem um outro?
 O homem com uma vontade danada, não sabendo o que dizer, calou-se. Mas, depois de alguns segundos, retrucou:
 — Você... tem um outro?
 Ensaiando sair da cama, Peter buscou ar e disse:
 — Tenho. 
 Depois de um instante, constatou: 
 — Ele é o meu amor consumado e nunca havia me dito de acordar com uma vontade danada. Não parece ser esse aí com quem eu estou conversando agora...
 Joca, atordoado, perguntou:
 — O que devo fazer para provar que eu sou o seu outro?
 — Dê duas piruetas no ar e vomite, respondeu Peter desinteressado.
 — Ih, mas que humor. Pra que isso?
 — Ah, não fala mais nada. Você me mata com o seu tesão.
 — Mas... assim é: Eu te amo...
Peter pegou o maço vermelho de cigarros, fisgou um e o acendeu. Baforejou fumaça azul pelo quarto. Joca, ainda sem entender, relampejou talvez haver se esquecido de alguma data importante e esse ser o motivo do outro estar chateado com ele. Esquivou-se:
— Desculpa, eu me esqueci que dia era hoje...
— Nem precisa gastar o seu latim com isso, hoje é um dia normal, como todos os outros. Só que você não é o meu outro. Nem nunca será.
Entender o motivo pelo qual o seu amado estava assim era uma tarefa árdua. Joca não queria brigar com ele, pois não era seu jeito. Nunca havia brigado assim com Peter. Apenas alguns desentendimentos no início do relacionamento haviam sujado o manto lívio de sua vida praticamente conjugal. No entanto, agora ambos sentiam um gosto amargo do prazer, da disputa e da diferença.
Joca acendeu um cigarro – e talvez outro. Avistou os álamos, através da janela, por detrás das nuvens de algodão. Olhou para dentro da moradia. Peter, não está mais aqui. A parede branca. A caixa escura sobre o sofá. A máquina do tempo. Baforejou uma fumaça lilás em direção à parede branca e desligou a máquina do tempo. Com tudo parado, poderia fazer concernimentos mais profundos.
„Se ele não me quer por eu não ser o seu outro, como pude perder o meu tempo, minha virgindade, meus planos e o meu futuro por ele?“
 Os olhos dele escureceram e o ódio venceu o amor. Agarrou a garrafa de vinho que beberam na noite anterior, jogou-a contra a parede e enquanto o outro perguntava o que era isso, saltou do quarto pela janela. A queda demorou alguns segundos. „...estou apenas acordando, venha a mim... um-dois-três...“
Querer demais pode levar ao inimaginável. Ambos olhavam o firmamento, deitados sobre a areia. Areia fofa de praia. Um avião corta o céu. Paisagens do futuro passavam pelas cabeças de ambos.
 Planejamento e paixão. Meio-dia. Joca oferece alface e toca o rosto de Peter com os lábios. Este retribui o carinho. Tarde. Todo o desejo, todo o presente de dias de prazer rompidos em sussurros e gritos... o primeiro beijo naquela primeira parada do ônibus para Salvador. As próximas paradas e o gozo cada vez mais crescendo dentro de suas calças. Anoiteceu. Os corpos roçando debaixo da coberta enquanto o ônibus percorre a rodovia em direção norte. Dias e mais dias sobre a areia, o sal e o sol queimando os seus corpos. Madrugada. Debaixo da areia, passa o tempo na ampulheta.
 Dentro da areia, passa o tempo na ampulheta. A areia transpassa o seu tempo na ampulheta. O tempo, o tempo... Joca deixou a máquina do tempo funcionar. Não que o quisesse. Sua respiração agora já não havia.
 Joca: pedaço de retalho no chão. Joca da Silva. Joca dos Três Poderes! O absoluto, político, empreendedor de uma agência de publicidade e o santo que todos um dia queriam comer! Mesmo havendo sobrevivido à queda com algumas fraturas que não eram letais, morreu segundos após, com o golpe do corpo de seu interlocutor caindo sobre si. Os dois corpos ficaram fundidos por algumas horas no pavimento. O último ainda vegetou por uns dias no hospital, vindo a falecer devido a uma intoxicação. Peter, beberrão. Peter, chefe da empreiteira. Peter, pai de uma ou duas filhas.
 Aos funerais que se seguiram compareceu, calado e entre o choro de muitos, o terceiro personagem desta história. Este „outro“, ao qual ambos se referiram em seus questionamentos no dia em que se suicidaram, antes de retornar à sua casa, tocou a campainha da casa da família de Joca. Queria buscar a máquina do tempo.
— Oi, sou amigo de infância do Joca.
— Por favor, entre.

15 de setembro de 2011

O ÚLTIMO DIA EM CASA

Passou algum tempo olhando as estrelas. Estava num lugar escolhido, pedaço mais escuro de uma rua na direção de sua casa e não se deixaria levar pela pressa cotidiana de chegar logo em casa. Desta vez saberia ignorar a sua inquietude e chegaria sereno e, quiçá solene.

Sempre que avistava a imensidão do céu noturno se perdia no tempo, no espaço e nas coisas ao seu redor. O céu reluzente segurava estrelas brilhantes e ele a pensar novamente no seu plano, praticando-o mais uma vez na mente.

Havia um perfume desconhecido que saía de um canteiro, lembrando uma fragrância doce. Bastava.

Quando chegou em sua rua olhou novamente para o alto, à sua volta, contornando com sua cabeça o pedaço do céu que pôde avistar, querendo ver mais do céu enquanto caminhava. Chegando em casa, pegou no bolso da calça o molho de chaves e abriu a porta de entrada. Subiu os andares sem pressa.

A sensação de se haver perdido naquele espaço que habitava há alguns anos, sem saber qual direção tomar, o que fazer o angustiava. A vida era tão pouco e ele queria mais. Não era liberdade, mas o caminho até lá era a liberdade. Era estranho, afinal de contas a liberdade se mesclava com o seu desejo real, amalgando-se em uma só coisa. Ele se questionava: como fôra chegar a essa dualidade? Quem soprou em sua cabeça a idéia de querer entrar num trem ao longe?

Ao notar que suas idéias se tornavam cada vez mais complexas, turvando-se, e que isso aumentava a sua confusão, podendo chegar a acarretar mais uma de suas convulsões, fugiu delas. Achou melhor deitar-se até que essa sensação nauseante passasse.

Havia sido uma semana cansativa e era preciso acalmar-se para poder se preparar para o plano. Tomou um tranquilizante e ao chegar ao sofá, avistou um livro sobre a mesa, tomou-o em mãos e começou a ler: “A noite passada sonhei que fui a Mardeley outra vez.” Deitou o livro. Foi arrumar a sua mala. Para isso, colocou-a sobre o sofá, único móvel na casa neste instante. Foi então que ele notou estar na casa vazia. Paredes, salas e quartos vazios. Nenhuma escrivaninha. Desligou a geladeira, não havia nenhuma razão para deixá-la ligada.

“O que me fez procurar aquilo que eu não conheço acima de tudo? Onde nasceu essa procura, que autarquicamente me compele todos os meus movimentos e escolhe a direção de minha vida, como um ditador? Negação de coisas provadas no passado?” Encadeando perguntas, sentiu que a curiosidade perdia seu brilho e enfraquecia até quase desaparecer, continuando a existir como um fio, havendo-se tornardo muito fraco o eixo que o pensamento fazia de uma idéia para a próxima. Dormiu.

Caminha languidamente. Sai da casa. Foi sem responder. A casa perguntava com a voz de sua ex-mulher: aonde vais?  Fez de conta que era história conhecida, fugiu da realidade mais uma vez, pela última vez. Seu trem partiu da estação às 13:32, com cerca de uma hora de atraso: por causa de mais um suicida sobre os trilhos.

8 de setembro de 2011

O AMOR IRREVERENTE


 
 
Burdon era mago de verdade e tinha a solidão como par. E nada mais queria. Trabalhar lhe dava o dinheiro necessário para poder ser mago. Achava importante enriquecer e gostava de estar de noite na cidade. Assim como se recolhia nos bosques de dia.

Naquele dia o mago saltou do metrô e saudou: „Olá, como vai? E John? Mande recordações a ele, sim?“

A reação atônita da pequena Marjorie, a promessa de dar as lembranças, a porta do metrô fechando-se, este continuando sua rota: tudo isto aconteceu diante das reverências exageradas de Burdon, cartola na mão, na qual seu coelho aparecia.

Era dia de apresentação, ele pensou. A casa estaria lotada. O mago estudara os truques e para o caso de esses não darem certo, guardara outros números rápidos para executar com o coelho. Magia verdadeira sempre vinga, pensou.

Na vista mareada se misturavam as últimas cenas com as coisas sem importância que passavam no túnel subterrâneo do metrô. Burdon! Ela se lembrou de seu nome e acordou do sonho que sonhava acordada. Lembrou-se então dos detalhes: há um mês atrás, no pub, troca de olhares. Bebiam vinho de maçã junto aos amigos. Quando a terceira rodada de copos vinha no antebraço musculoso da garçonete, o coelho saltou da cartola de Burdon, ganhando os aplausos de todos. Os ruídos das mesas cheias cobriam suas vozes. Ninguém reparou nos dois. Mais tarde um grupo de jovens alcoolizados seria visto saudando-se com muita festa. Entre eles, Burdon e Marjorie. A risada alegre dela ecoava pelas aléias e pátios marrons. Bem-querer, e os corpos dançando à luz noturna. E hoje, o que sobrou disso tudo? Recordações a John! Mal sabe esse mago idiota que John nunca foi meu namorado! Ah Marjorie! A indecisão era maior que tudo em Burdon!

Era manhã e ele estava numa padaria a tomar o desjejum. Ela o viu se chegar como um fantasma. Vendo Marjorie passar, cumprimentou-a: „Olá? Onde vai? E John?“ Depois de um momento ela disse ser impossível falar de John, não seria sua companheira, nem nunca havia sido. Burdon pediu desculpas emudecendo. Não gostava de diálogos e deixou Marjorie. Fugiu, sem nada dizer. Era de manhã. Marjorie foi vista atrás dele. Talvez uma sombra matutina distante dele, por entre pátios universitários e árvores grandes? Ela fazia jogatinas sobre qual direção ele tomaria. Via o coelho chamando. Poemas arpejavam em melodias douradas pelas sombras e nuanças de dias de sol vividos em jardins ingleses.

De tanto brincar, numa esquina perdeu o amado. Já era tarde quando sentiu mais uma vez que o amava. O mago, invísivel, proclamou que viveria sempre à noite e desejou que Marjorie fizesse magia neste estilo longe dele. Sentenciou a si, que magia não combinava com amor e que ademais amor só atrapalha o artista que se prezava. Ela nem procurava mais e ficou no seu canto, a chorar: de ofegante a sua respiração se tornou lenta, indiferente.

Sonhos e realidade se mesclavam sem mais haver diferenças. Ela não sabia mais se era amanhecer ou fim de tarde quando o havia visto pela última vez. Não sabia onde foi que se desencontraram. Não pensava nem na razão. Ela era só vontade. Às vezes revolta.

Holofote girando na apresentação do grande mago Burdon! Entraram os passos estudados, suas mãos estavam rápidas e sagazes, seus movimentos não podiam ser desvendados. Nos primeiros números, apesar do nervosismo, tudo correu bem. Então no quinto número um pequeno imprevisto. Depois um escorregão. O mago percebeu que praticamente todos da fileira da frente o notaram e, perplexo, apelou para os “truques do coelho”. Sempre dão certo!, pensou. Mas desta vez, ó azar, qual foi a sua perplexidade, não achando o pequenino na cartola! A magia lhe disse adeus e a platéia era só vaias. Logo ouviu as queixas do chefe e se foi. Pro olho da rua, seu mago de meia-tigela!

No quarto de Marjorie pedras perfumadas, sutil iluminação new age e trilha sonora de desenhos animados. O coelho demorou a ser reconhecido, parecendo se esconder na parede de bichos de pelúcia. Por fim conseguiu chamar a atenção, mordiscando Marjorie. Saiu janela afora e ela o seguiu pelas travessas e ruas de Soldempdon, dentro do metrô e ônibus, o povo a chamando louca-olha-por-onde-anda, até chegar num bosque.

Era meio-dia e numa clareira Burdon lamentava a perda do coelho, quando a reconheceu. Ela se deitou e o arranjou sobre seu ombro. Tocaram as mãos sem apagar a luz do sol. Apenas uma cornucópia cresceu em ramos sobre suas cabeças.



 Revisão Vana Comissoli.
Todos Direitos Reservados ao Autor Udo Baingo.