O PEIXE QUE
UIVAVA
Ele foi visto pela primeira vez na
noite em que a chuva torrencial começou. Ninguém sabia de quem era, de onde
viera – se dos lados da lagoa insólita ou da rodovia da mesmice. Ora ia em
direção da lagoa, ora virava-se e tomava o rumo oposto, para a rodovia.
A reação ao vira-lata era nula, pois se esperava que ele um dia
seguisse o rumo para um dos lados e acabasse qual um cachorro como muitos
outros da lagoa ou um cadáver para a fome dos urubus. Por ele continuar ali na
cidade, uns poucos até o condenaram. Mas, estando todos no rumo que a vida
toma, nos afazeres diários ou em direção de suas casas, chegando a algum
encontro importante não-se-sabe-para-quê, as condenações não passaram de uma ou
outra frase sem maior importância. Vira-lata é mais coisa do que ser vivo. De
modo que, ignorado, soube ignorar, mostrando sua língua salivante e um tanto
suja de terra ferruginosa.
Quando a chuva forte chegou, todos os transeuntes sumiram, a fim de
se salvarem. Assim, tudo ficou ainda mais fácil para o cachorro. Ele decidiu se
plantar no meio da rua e aguardar o fim da torrente. Enrolou-se em torno de si
e ficou imóvel.
Choveu sete anos ao todo. Comecei a marcar no meu calendário quando
notei que das paredes de casa começaram a aparecer pingos condensados. E os
dias se foram, lentos, mas convictos.
Ao final das chuvas, pouco tempo ficou para tristes pensamentos.
Pouco tempo para o luxo de pensar em si. Todos averiguavam os danos causados.
As casas abandonadas que antigamente tinham armários, janelas, persianas, agora
tinham peixes mortos, cadáveres de marrecos e garças. Onde antes um tapete
simples, agora lama e terra.
E poucos viram o cachorro levantar a cabeça, olhar para trás, como a
espreguiçar-se. Depois, à direita e à
esquerda, observou. Havia valas em ambos os lados da rua, por onde o rio de
água turva correu carcomendo o pavimento, e dessa forma protegendo o cachorro
da enchente. Ali, no meio da cidade e no centro da rua, ele ficara intacto. À
margem de tudo, pois ninguém mais o notava, tomados que estavam todos pelos
cuidados com seus pertences deixados nas casas ou o que a chuva abandonou para
contar história.
Foi a família Piero, do circo que pegara fogo no verão antes das
chuvas, que primeiro se atentou ao fato dos pelos do cachorro terem caído
durante o chuvaréu. As crianças, cheias da tragédia dos adultos, prontamente
começaram a passar suas mãos na pele canina, brincando com ele. Ele não apenas
estava sem pelos, mas também com outro tipo de pele. Eram escamas.
Atrás das crianças, alguns adultos viram o cachorro. Para a surpresa
de todos, quando ele se levantou e se espreguiçou, mostraram-se barbatanas
entre os membros e o dorso; e ao receber um prato com água, para beber, ele fez
movimentos de boca como um peixe e pulou para dentro.
Quando as forças do Exército vieram com mantimentos e foram
consertar provisoriamente o pavimento das estradas, ficaram sabendo da
novidade. Acabaram achando-o em uma apresentação de circo: "o peixe que
sabe uivar". Ficou claro que o tal peixe era um fenômeno biológico. Ele
seria um prato cheio, pensavam os cientistas, e todos já se perguntavam quando
iriam capturá-lo, fazer experimentos, gravar o DNA e todas essas coisas.
Foi Tchuí Piero, o caçula do circo, quem, cheio de medo, largou por
fim o peixe no rio: melhor entregá-lo à natureza, do que às revistas de
biologia e às catacumbas de espécies, pensou. A partir desse dia não se viu
mais o cachorro-peixe. Só nas noites se ouvia o seu misterioso uivado. Até que
um dia um publicitário o achou em um site de relacionamentos.