3 de novembro de 2011

O AMOR IRREVERENTE


Burdon era mago de verdade e tinha a solidão como par. E nada mais queria.
Trabalhar lhe dava o dinheiro necessário para poder ser mago. Achava importante
enriquecer e gostava de estar de noite na cidade. Assim como se recolhia aos bosques,
de dia.
Naquele dia o mago saltou do metrô e saudou: „Olá, como vai? E Gil? Mande
recordações a ele, sim?“
A reação atônita da pequena Marjorie, a promessa de dar as lembranças, a porta do
metrô fechando-se, este continuando sua rota: tudo isso aconteceu diante das
reverências exageradas de Burdon, na mão a cartola, na qual o coelho aparecia.
Era dia de apresentação, ele pensou. A casa estaria lotada. O mago estudara os
truques e para o caso desses não darem certo, guardara outros números rápidos para
executar com o coelho. Magia verdadeira sempre vinga, pensou.
Na vista mareada se misturavam as últimas cenas com as coisas sem importância que
passavam no túnel subterrâneo do metrô. Burdon! Ela se lembrou de seu nome e
acordou do sonho que sonhava acordada. Lembrou-se então dos detalhes: há um mês,
no boteco, troca de olhares. Bebiam vinho de maçã junto aos amigos. Quando a terceira
rodada de copos vinha no antebraço musculoso da garçonete, o coelho saltou da cartola
de Burdon, ganhando os aplausos de todos. Os ruídos das mesas cheias cobriam suas
vozes. Ninguém reparou nos dois. Mais tarde um grupo de jovens alcoolizados seria
visto saudando-se com muita festa. Entre eles, Burdon e Marjorie. A risada alegre dela
ecoava pelas aleias e pátios marrons. Bem-querer e os corpos dançando à luz noturna. E
hoje, o que sobrou disso tudo? Recordações a John! Mal sabe esse mago idiota que John
nunca foi meu namorado! Ah, Marjorie! A indecisão era maior que tudo em Burdon!
Era manhã e ele estava a tomar o desjejum. Ela o viu se chegar como um fantasma.
Vendo Marjorie passar, cumprimentou-a: „Olá? Onde vai? E John?“ Depois de um
momento ela disse ser impossível falar de John, não seria sua companheira, nem nunca
havia sido. Burdon pediu desculpas, emudecendo. Não gostava de diálogos e deixou
Marjorie. Fugiu, sem nada dizer. Era de manhã. Marjorie foi vista atrás dele. Talvez uma
sombra matutina distante dele, por entre pátios universitários e árvores grandes? Ela
brincava com palavras, prevendo qual direção ele tomaria. Via o coelho chamando.
Poemas arpejavam em melodias douradas pelas sombras e nuanças de dias de sol
vividos em jardins ingleses.
De tanto brincar, numa esquina perdeu o amado. Já era tarde quando sentiu mais uma
vez que o amava. O mago, invisível, proclamou que viveria sempre à noite e desejou
que Marjorie fizesse magia neste estilo longe dele. Sentenciou a si que magia não
combinava com amor e que, ademais, amor só atrapalhava o artista que se preza. Ela
nem o procurava mais e ficou no seu canto, a chorar: de ofegante sua respiração se
tornou lenta, indiferente.
Sonhos e realidade se mesclavam sem haver diferenças. Ela não sabia mais se era
amanhecer ou fim de tarde quando o havia visto pela última vez. Não sabia onde foi que
se desencontraram. Não pensava nem na razão. Ela era só vontade. Às vezes revolta.
Holofote girando na apresentação do grande mago Burdon! Entraram os passos
estudados, suas mãos estavam rápidas e sagazes, seus movimentos não podiam ser
desvendados. Nos primeiros números, apesar do nervosismo, tudo correu bem. Então,
no quinto número, um pequeno imprevisto. Depois um escorregão. O mago percebeu
que praticamente todos da fileira da frente o notaram e, perplexo, apelou para os
“truques do coelho”. Sempre dão certo!, pensou. Mas desta vez, ó azar, qual foi sua
perplexidade, não achando o pequenino na cartola! A magia lhe disse adeus e a plateia
era só vaias. Logo ouviu as queixas do chefe e se foi. Pro olho da rua, seu mago de
araque!
No quarto de Marjorie pedras perfumadas, sutil iluminação new age e trilha sonora
de desenhos animados. O coelho demorou a ser reconhecido, parecendo se esconder na
parede de bichos de pelúcia. Por fim conseguiu chamar a atenção, mordiscando
Marjorie. Saiu janela afora e ela o seguiu pelas travessas e ruas de Soldempdon, dentro
do metrô e ônibus, o povo a chamando louca-olha-por-onde-anda, até chegar num
bosque.
Era meio-dia e numa clareira Burdon lamentava a perda do coelho, quando a
reconheceu. Ela se deitou e o arranjou sobre seu ombro. Tocaram as mãos sem apagar a
luz do sol. Apenas uma cornucópia cresceu em ramos sobre suas cabeças.

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