"A impermanência é uma característica dos dias de hoje, mais do que dos dias da Bíblia. A unidade de Deus faz a lembrança necessária, assim como a exegese de um sinônimo para um ator permanente nas brumas da existência. Poderíamos ter dias mais calmos sem pensar em coisas acontecidas, quando a unidade de Deus nos pede racionalidade, abstração e poder de lembrança infinita."
Ari acordara mal disposto e controlava um texto seu. Beleza destoada pela poluição do inverno paulista podia-se sentir nessa manhã. A falta de chuva fez acumular uma densa cortina de gases sobre São Paulo, ele se agarrava às cobertas, apertando elas à sujeira de seu corpo depois de mais uma noite na Pasárgada. Lia seu esboço: "...por um lado Deus pede interioridade, ao invés da exterioridade entrevista em adorações de seres ou de objetos, por outro lado a exterioridade de um Ser único." Ari mantinha palestras consigo mesmo sobre sua obra. A sua musa sempre foi seu pensamento e mais nada. Continuava lendo: "A necessidade da pluralidade dionísica e sua melhor lembrança, alinhavando a via do pensamento humano, precisava ser dito, não contrariava a essência da unidade de Deus."
Ari resolve enfim acordar e escolhe a roupa que transmita o mais comum sentimento. No banheiro toma um banho bom e sai. O seu corar do rosto e gesto de eterna e profunda interrogação deixa rastros por onde passa. As pessoas olham para Ari, pois ele olha para tudo interrogando. Foi quando avista a casinha verde no meio da rua, algumas meninas como que esperando por ele defronte.
Pergunta à dona da casa o funcionamento e ela responde como uma empresária. "Durante sua permanência em nosso recinto nossas garotas cuidam do Senhor. Se desejar, o Senhor pode trazer seu preservatório ou nós podemos oferecer-lhe preservatórios próprios de nossa casa..." Etc. Ari entra, toma um drink, escolhe uma menina boa com a qual não transa, conversa uma ou duas horas, paga e vai embora pra Pasárgada. O sol bate forte por lá. Pensa: "... o sol vive da impermanência de seus fótons, que são criados pela excursão de partículas pequenas através de camadas representando a energia necessária. E conhecemos o sol apenas pela permanência da luz, mas sabemos que ele é impermanente, às vezes há mais vento solar, outras horas menos, uma hora o sol apagar-se-á e outra permanência deiforme será esvanecida existindo, outra centelha queimará de desejo..." Debaixo de sua língua um tablete lisérgico faz cócegas, ele se derrete antes dele poder senti-lo com sua língua. Então acorda, o poema de Manuel Bandeira aberto no sonho.
BLOG DE PROSA DE UDO BAINGO. PERSONAGENS, TEXTOS, CONTOS, NOVELAS REGISTRADOS NA BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL.
6 de junho de 2010
2 de junho de 2010
Amigos A1, A2, A3 e A4
Um dia me perguntaram e em uma carta respondi, listei os amigos que ainda não sabia se tinha mesmo. Apenas para mostrar que tinha, não só um, já tinha alguns e que eu não era tão só como se poderia pensar. Meio por pirraça, porque quem pedia a lista não estava ao meu lado e me valia a vida, uma vida que amizade nenhuma engloba.
Meus amigos eram de diversos lugares, de diferentes classes sociais e viviam todos na mesma rua, naquela que eu habitava. Eram mistura boa, tinham gostos por coisas variadas.
Conheci-os na pelada casual de rua, no estar-à-toa-na-rua.
Ouvi falar que A1 morreu. Passava drogas. Seu pai urinava no lavabo com a porta do barraco escancarada.
A2 se babava falando das coxas da morena de um filme de um programa de tevê semanal chamado Sala Especial.
Dizem que seu tio o comia, depois A3 parece que se picava. Tinha amizade com A1 durante algum tempo. Apenas ouvi falar também: certa vez sua mãe abaixou sua calça e, gaúcha guasca, deu-lhe uma sova de tábua, na frente de todos da vila. Há muitos anos atrás, lá na rua de casa, A3 cobrou-me a amizade que nunca tivemos. Estranhei, mas me lembrei que estava listado naquela carta de muitos anos atrás, e por isso aceitei-o meu amigo pelo dedo uma conversa fiada de despedida.
Há tempos já nem via mais A4, porque ele era batista e se meteu na igreja, acompanhava esposa num paletó de domingo. Passava cabisbaixo, escodendo a Bíblia negra em capa de couro debaixo do braço, como saco de pãozinho em fim de tarde. Subia a rua solenemente. Outro dia, nos encontramos por acaso no ônibus. Equilibrando-me de pé disse que me mudaria para a Alemanha e ele me fitou como se eu nunca mais voltasse, como quando criança mostra que não é brincadeira - e já éramos adultos - para dizer que lá (aqui) tudo seria muito melhor para mim. Como se eu nunca mais voltasse.
Meus amigos eram de diversos lugares, de diferentes classes sociais e viviam todos na mesma rua, naquela que eu habitava. Eram mistura boa, tinham gostos por coisas variadas.
Conheci-os na pelada casual de rua, no estar-à-toa-na-rua.
Ouvi falar que A1 morreu. Passava drogas. Seu pai urinava no lavabo com a porta do barraco escancarada.
A2 se babava falando das coxas da morena de um filme de um programa de tevê semanal chamado Sala Especial.
Dizem que seu tio o comia, depois A3 parece que se picava. Tinha amizade com A1 durante algum tempo. Apenas ouvi falar também: certa vez sua mãe abaixou sua calça e, gaúcha guasca, deu-lhe uma sova de tábua, na frente de todos da vila. Há muitos anos atrás, lá na rua de casa, A3 cobrou-me a amizade que nunca tivemos. Estranhei, mas me lembrei que estava listado naquela carta de muitos anos atrás, e por isso aceitei-o meu amigo pelo dedo uma conversa fiada de despedida.
Há tempos já nem via mais A4, porque ele era batista e se meteu na igreja, acompanhava esposa num paletó de domingo. Passava cabisbaixo, escodendo a Bíblia negra em capa de couro debaixo do braço, como saco de pãozinho em fim de tarde. Subia a rua solenemente. Outro dia, nos encontramos por acaso no ônibus. Equilibrando-me de pé disse que me mudaria para a Alemanha e ele me fitou como se eu nunca mais voltasse, como quando criança mostra que não é brincadeira - e já éramos adultos - para dizer que lá (aqui) tudo seria muito melhor para mim. Como se eu nunca mais voltasse.
Anedota
- Não me fala nada, já sei. Aí você pegou cimento, areia, jogou ambos numa banheira, o mar à sua frente, e ficou misturando água com a mão ilusória até dar liga. E daí jogou num vaso-coração. Deitou o pé fraco. Esperou secar. E se jogou no mar.
- Sim, mas antes ainda fisguei você, e te coloquei no meu bolso.
O peixe olhou por uma última vez o asfixiado sem se lembrar do diálogo.
- Sim, mas antes ainda fisguei você, e te coloquei no meu bolso.
O peixe olhou por uma última vez o asfixiado sem se lembrar do diálogo.
ELEGIA
Feliz por não estar mais pensando nEla e cansado do trabalho, se pôs a dormir. O
sono é lento. Nisso, ela entra pela janela do quarto de dormir, sua encantada
amazona missioneira, em um manto marrom medieval e longa cabeleira encaracolada.
Disse:
- Quero queimar as roupas de vícios que marquei em mim. Quero cantar alto o
nosso grande Amor, mesmo que de pés cansados. Pois aonde eles nos levarem foi
onde Ele quis estar.
Jogando o escudo de metal ao chão reiterou:
- Um sem outro peca. Vem para mim, que sejamos íntegros assim.
Num ímpeto, correu para a estação de trem. Ao chegar lá, uma adolescente
queimava numa plataforma inalcançável seu primordial diário.
sono é lento. Nisso, ela entra pela janela do quarto de dormir, sua encantada
amazona missioneira, em um manto marrom medieval e longa cabeleira encaracolada.
Disse:
- Quero queimar as roupas de vícios que marquei em mim. Quero cantar alto o
nosso grande Amor, mesmo que de pés cansados. Pois aonde eles nos levarem foi
onde Ele quis estar.
Jogando o escudo de metal ao chão reiterou:
- Um sem outro peca. Vem para mim, que sejamos íntegros assim.
Num ímpeto, correu para a estação de trem. Ao chegar lá, uma adolescente
queimava numa plataforma inalcançável seu primordial diário.
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