BLOG DE PROSA DE UDO BAINGO. PERSONAGENS, TEXTOS, CONTOS, NOVELAS REGISTRADOS NA BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL.
25 de setembro de 2009
O OGRO SOLITÁRIO
Os cascos batem contra o assoalho de madeira. Mancando, puxo as correntes entre as pernas gordas e sujas de ranço. Dou fungadas intercaladas de assovios e grunhidos. Resmungo. Sou eu o ser que faz esses sons estranhos no andar de cima.
Solto lamentos por cada incapacidade, desânimo ou desmerecimento seu, sou quem fabrica as suas crises de enxaqueca e injeta catarro em seus pulmões, enche de manchas de bolor os seus cômodos.
Eu engendro automatismos maléficos que corroem o seu agir e pensar. Insemino cotidianamente mau-humor e agonia em seus dias.
A mulher que não há, os filhos que nem existem.
Nada lhe ajuda mais. Você é a má reputação em pessoa. Ninguém vem lhe ver, ninguém quer que você entregue cartas. Seus pombos-correios sem cabeça, a foto da esposa que tanto quis, tudo isso disposto no baú desse sótão. Não é necessário dizer para não beber da água do poço. Já nem pensa em limpar e as defuntas ratazanas cobrem toda a água.
Sim, eu sei, você quer me ver. Entre pela porta do sótão, vem ver a vista daqui de cima. Por sobre as copas de árvores, mesmo que desfolhadas, dessas florestas fechadas, a fumaça das chaminés nos vales ao horizonte. Idílico, não?
Depois, dê uma olhada no que guardou no baú do tempo. Ainda jura alguma coisa? Pobre velho! Não há mais nada que querer! Nada mais que lembranças, amargadas pelo tempo!
Espere, o que quer fazer? Não seja tonto! Para onde aponta? Você não é capaz de apertar o gatilho, uma vez que sou o seu próprio orgulho, que lhe mantém vivo. Sei à mirra, sou um bálsamo para o seu ser. Somente eu posso mudar o curso de sua vida. Somente eu sei onde se esconde a sua vontade.
Um momento. O que quer no espelho?
Onde você foi? Precisamos falar... Volte, as velhas lembranças tão guardadas, só para você...
Um tiro chicoteou o ar e vibrou pelas paredes, ecoando pela canalização da chaminé.
Mais tarde, um corvo muito esquecido se interessava pelo resto de calor que emanava da chaminé quando o homem saiu da casa. Bem agasalhado para o rigoroso inverno, com uma mochila de andarilho, ele mancou pelo caminho do jardim branco e saiu pelo portão. Agora o corvo pôde ver: ele tinha uma corrente nos pés.
A neve alta e a corrente não deixaram o ogro solitário chegar tão rápido à sua próxima vítima. Mas ele não tarda, sabia o corvo.
Não havia ninguém no caminho da floresta. Começou a chover. O ogro parou, abriu sua mochila,
tirou dali os olhos do suicidado. Ingeriu-os e viu. Viu um pequeno pedaço de caminho para outra casa.
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