Foto: Stephen Foskett
Quando Alberto ofereceu à sua esposa Susan para ser o seu instrutor de auto-escola, ela redarguiu com olhar sério e vazio que “infelizmente Gustav já havia agendado”. Na Alemanha isso de se marcar compromissos com antecedência exagerada é normal, as pessoas já têm suas agendas prontas para daqui a um ou dois meses. Então, deixou estar, que fosse assim. Achou estranho haver oferecido aulas práticas para a carteira de motorista de Susan em um fim de semana livre, ela já havia se encontrado com Gustav e sua esposa, em um desses encontros regados a água gaseificada em temperatura ambiente e bolo.
Alberto conhecera Gustav e sua esposa Helga naquela tarde de primavera clara. Estranhou o olhar fixo e ininterrupto por trás das lentes verdes escuras dos óculos de Gustav. A boca carnuda, o rosto redondo e a barba impecavelmente feita, sempre impecavelmente feita, como se não crescesse nada no rosto. O resultado era uma pele que tinha a aparência de carne de porco salgada. A pele desgastada dos verões passados no mar do leste. Nos dez verões passados na praia Gustav conseguiu queimar tantas vezes a pele, que com 50 anos a sua pele parecia a de um elefante. Depois de todos esses anos começou a festa: Gustav herdou de seu único tio as casas e diversos carros, entre outros, um carro especial.
Alberto não esperava mudar o mundo nem a forma de tratamento dos alemães, mas que pelo menos pudesse se sentir útil, iria reclamar a Susan. Mas enfim havia esquecido.
Estava chateado com a perspectiva de um domingo em casa quando Susan lhe falou de manhãzinha que Gustav queria ir aos morros bucólicos da estrada romântica.
_ ... Hoje?
_ Sim. Gustav gostaria que você e Max nos acompanhassem. Ele disse que posso dirigir o seu carro especial.
Alberto achou interessante. Enfim Susan iria dirigir e isso já bastava. Aprendesse a dirigir logo, para poder levar Max para o kindergarten.
Ainda faziam os sanduíches para o pic-nic quando o carro estacionou. Era um Buick preto. Carro de velho? Não, já era raridade. Alberto foi dizendo que isso não podia ser. Quando viu a marcha automática, Alberto olhou para Susan de soslaio, perguntando se sabia que é melhor aprender a passar as marchas manualmente. Mas ela não dava ouvidos e já estava a caminho de dar o alô serviçal a Gustav.
Apesar da rota romântica ser uma das atrações da Suávia, destaque de catálogos de turismo, nunca havia passeado por ela. Estava naquele pedaço da Alemanha já havia um ano porque Alberto havia conseguido uma boa oferta de emprego, mas não visitavam nada da região. Eram as saudades de sua cidade e da região da Alemanha, dos seus pais, da comidinha da mamãe nos domingos. Por isso mesmo precisava sempre ver a “família Gustav”, porque eles eram amigos de longa data da família. Uma das casas herdadas por Gustav ficava na floresta negra.
Gustav falava inspirando ar porque a respiração não cobria a demanda de uma frase. Dava aflição. Talvez por isso falasse muito pouco. Mas por que a voz de comando? Talvez o convívio com Helga, que só fazia o que ele pedia, o deixara assim.
Logo notaram que Susan já sabia andar de carro, que só se sentia indecisa se já poderia começar a auto-escola.
Saindo da cidade os belos lugarejos começavam a passar pela janela do Buick. Redondos e bucólicos morros, que deixavam a gente alegre, transmitindo bem-estar. A Alemanha é mulher forte, como uma grande guerreira segurando espada sobre uma pilha de feno. Seus campos são verdes de um verde forte e marrons. Os vales são sombreados como a sombra de uma varanda. Seres míticos não são necessários quando a beleza passa pela janela, sem aviso.
Estava hipnotizado pelas dobras daquela nuca, os juncos que desciam para o dorso. Parecia que se descesse até as ancas ainda encontraria o mesmo vale de pele e qualquer sujeira que passara despercebida no banho. Era bom olhar através da janela, até porque isso impedia que fixasse os olhos no pescoço pele de elefante de Gustav.
As paradas eram ao mesmo tempo um alívio para sair do carro e um problema porque tinha que aguentar Gustav, que parecia ter problemas de saúde, ora lhe doíam as costas, ora uma outra região do corpo. Ele não se levantava com facilidade.
A sensação de estranheza ia crescendo. Já não desciam mais do carro, apenas estacionavam ou paravam. Alberto louco por um pouco de ar fresco, se sentia sufocar.
Gustav pediu para dirigir. Silêncio.
Alberto sentia o ar condicionado rasgando os pulmões. Dor de cabeça. Como que numa reação automática, abriu o vidro.
Curvas.
Mais curvas.
Gustav sentiu o vento da janela aberta e advertiu Alberto.
− Pardon, pardon...
Max sentiu e começou a chorar.
A viagem continuou cada vez mais sórdida. Curvas caladas, subidas e descidas quietas.
Às vezes o choro de Max. Até a última parada para o almoço às três da tarde.
Gustav pediu joelho de porco com chucrute e batatas. De repente, se tornou falante. Respirava fortemente, como se tivesse digerido por longo tempo o que verbalizava. Seu rosto estava vermelho. Meu Deus! O ar condicionado poderia estar destruído! Alberto! Por acaso não sabe a tolice que cometeu? E nada mais. Não tossiu como de praxe, nem parecia sentir falta de ar. Aparentava estar mais saudável. A esposa que era enfermeira, geralmente prescrevia espontaneamente remédios, tabletes e pílulas a granel, conforme o seu estado de saúde, mas agora apenas estendeu o copo d’água e um placebo qualquer que achou no bolso, só para que Gustav relaxasse.
A volta para casa correu normal. Susan não quis dirigir. Gustav novamente. Pelo menos assim ele não falava. Alternava baixar e subir do quebra-sol, pois os vales eram escuros demais para os óculos escurecidos e os morros eram ensolarados demais para os seus olhos claros.
Em uma descida Gustav fitou o sol do horizonte com um olhar confiante. Não baixou o quebra-sol dessa vez. Sorriu com os lábios de joelho de porco abertos e desfaleceu sobre o volante. O carro não se desgovernou, pois as rodas estavam retas.
A velocidade aumentava e Alberto viu o suor frio escorrendo pelo vales na nuca de Gustav. Susan puxou o breque de mão. Helga estendeu o braço para o volante e assim ficou, pois o corpo do marido desmaiado caiu sobre o seu enquanto o carro cambalhotava no ar sobre a pista cinza.
4 comentários:
Aceito comentários de todo tipo! Obrigado! :D
É... o pessoal em questão não é assim tão "alemão" como pode parecer à primeira vista. Deixar alguém sem carta de condução (carteira de motorista) dirigir um carro é um pouco arriscado. Deve dar até cadeia se eu me lembro bem (Claro que a cena clássica do pai ensinando o filho a dirigir no sítio também acontece por aqui..) Mas vai ver o cara sabia que ia morrer e resolveu morrer de maneira feliz, talvez dentro do carro preferido.
L. Ramos J-town
Interessante construção que elevou a tensão do "passeio" pela trama até o ponto de desfecho. Fiquei com vontade de poder entender mais a fundo e saber mais da trama - isso é bom.
Seria mais efetivo definir explicitamente se o texto é pra rir (carne de porco salgada), pra incomodar (os detalhes do corpo de pele de elefante) ou pra criar um suspense (Susann vai nos matar porque dirige mal ou porque esconde algo). O tipo de narração me dificultou um pouco a separação e identificação, ora hetero- com aspas ou travessão e ora homodiegético ("que deixavam a gente alegre").
Siga brincando a sério!
Raffaello (imprensadeimpressoes)
Não sei bem que tipo de comentário fazer. Acho que recheei a história com os fatos que conheço e que tens na cabeça, mas não explicitasse.
Achei linda a comparação do corpo humano com o corpo geogr´fico. Linda mesmo!
Tem algumas repetições silabares q sei, tens condição de perceber e transformar.
Não incomoda se as metáforas são para rir ou incomodar, torna bem clássico o comportamento humano oscilante.
Eu só queria mais carro!!
Bjs Vana
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