8 de dezembro de 2008

O PEIXE QUE UIVAVA








            Ele foi visto pela primeira vez na noite em que a chuva torrencial começou. Ninguém sabia de quem era, nem se ele havia vindo dos lados da lagoa insólita ou da rodovia da mesmice. Ora ia em direção da lagoa, ora virava-se e tomava o rumo oposto, para a rodovia.
A reação ao vira-lata era nula, pois se esperava que ele um dia seguisse o rumo para um dos dois lados e acabasse tal qual um cachorro como muitos outros da lagoa ou um cadáver para a fome dos urubus. Por ele continuar ali na cidade, uns poucos até o condenaram. Mas estando todos no rumo que a vida toma, nos afazeres diários ou em direção de suas casas, chegando a algum encontro importante não-se-sabe-porque, as condenações não passaram de uma ou outra frase sem maior importância. Vira-lata é mais coisa do que ser vivo. De modo que, ignorado, soube ignorar, mostrando sua língua salivante e um tanto suja de terra ferruginosa
Quando o aguaréu não deu mais chances e todos os transeuntes sumiram, a fim de se salvarem, tudo ficou ainda mais fácil para o cachorro. Ele decidiu se plantar no meio da rua e aguardar o fim da torrente. Enrolou-se em torno de si e ficou imóvel.
Choveu sete anos ao todo. Comecei a marcar no meu calendário quando notei, que das paredes de casa começaram a aparecer pingos condensados. E os dias se foram, lentos, mas convictos.
Ao final das chuvas, pouco tempo ficou para tristes pensamentos. Pouco tempo para o luxo de pensar em si. Todos averiguavam os danos causados. As casas abandonadas tinham antigamente armários, janelas, persianas, agora tinham peixes mortos, cadáveres de marrecos e garças. Onde antes um tapete simples, agora lama e terra.
E poucos viram o cachorro levantar a cabeça, olhar para trás, como a espreguiçar-se. Depois,  à direita e à esquerda, observou. Havia valetas em ambos os lados da rua, por onde o rio de água turva correu carcomendo o pavimento, e desta forma protegendo o cachorro da enchente. Ali, no meio da cidade e no centro da rua, ele ficara intacto. À margem de tudo, pois ninguém mais o notava, tomados pelos cuidados com seus pertences deixados nas casas ou o que a chuva abandonou para contar história.
Foi a família Piero, do circo que pegara fogo no verão antes das chuvas, que primeiro se atentou ao fato dos pelos do cachorro terem caído durante o chuvaréu. As crianças, cheias da tragédia dos adultos, prontamente começaram a passar suas mãos na pele canina, brincando com ele. Ele não apenas estava sem pelos, mas também com outro tipo de pele. Eram escamas.
Atrás das crianças, alguns adultos viram o cachorro. Para a surpresa de todos, quando ele se levantou e se espreguiçou, mostraram-se barbatanas entre os membros e o dorso; e ao receber um prato com água, para beber, ele fez movimentos de boca como um peixe e pulou para dentro.
Quando as forças do exército vieram com mantimentos e foram consertar provisoriamente os pavimentos da estrada, ficaram sabendo da novidade. Acabaram achando-o em uma apresentação de circo: "o peixe que sabe uivar". Ficou claro que o peixe era um fenômeno biológico. Esse peixe seria prato cheio, pensavam os cientistas, e todos já se perguntavam quando iriam capturá-lo, para fazerem experimentos, gravarem o DNA e todas essas coisas. 
Foi Tchuí Piero, o caçula do circo, quem, cheio de medo, largou por fim o peixe no rio: melhor entregá-lo à natureza, do que às revistas de biologia e às catacumbas de espécies, pensou. A partir deste dia não se viu mais o cachorro-peixe. Tchuí o apelidara de Taínha: Taínha Piero, o Peixe que Uivava. Até que um dia um publicitário o achou no Orkut.

Revisão Vana Comissoli
Todos Direitos Reservados pelo Autor, Udo Baingo.

2 de dezembro de 2008

BIS

Lembro-me de um amigo secreto. Na verdade, do meu único amigo secreto em toda minha vida. Sim, talvez foi o primeiro e o último.

Estava na segunda série do primário e tinha paixão por uma loirinha chamada Carla. Ela era minha "namorada" secreta. Ninguém sabia. E se sabia, também não é de meu conhecimento hoje, 28 anos mais tarde.

Era hora de cada um tirar o seu amigo secreto. A professora, com jeitinho português, escreveu em diversos bilhetinhos o nome de cada um e espalhou os pedacinhos de papel fechados sobre a mesa. Ela chamava um por um em ordem alfabética. Carla tirou o nome de seu amigo secreto. Pediu para tirar de novo, pensando poder tirar sua amiga. A professora disse que não era assim que funcionava. Carla olhou a mesa e escolheu um papelzinho, fosse o de sua amiga? Leu e fez cara feia e balançou o corpo. Não gostou e pediu para tirar outro. A professora - acho que se chamava Lucélia ou Lúcia - falou que não era assim, e que ela se comportasse. Carla jogou o papelzinho no lixo, ralhando como uma arara. Quando perguntaram quem era seu amigo secreto, ela apontou com o dedo para mim.

A chamada da professora passou o E,F, G ... chegou no T e o U veio direto pra mim, minha vez de tirar o bilhetinho. Havia vários bilhetinhos ainda sobre a mesa... por que isso? Não foi alfabética a ordem? Ou tinham juntado diversas classes? Timidamente puxei um bilhete e o entreguei para a professora. Ela sorriu e me mostrou o nome. CARLA. Ela havia me tirado e agora eu a tirei. Fiquei sem entender direito.

Dia da entrega de presentes. Havia sido um ano diferente para mim. Tudo novo: cidade nova, novos amigos... e com sete anos a gente espera ser aceito por tudo e todos. Nem sempre dei certo com meu sotaque de gaúcho e meu jeito enfezado. Amigos tinha. Mas queria muito mais uma namorada.

Desde o início queria uma namorada. Quando havia chegado em São Paulo, fiquei morando na Avenida Morumbi, logo defronte a um semáforo, na casa de uma tia. Os carros arrancavam e faziam um barulhão. Tinha uma vizinha com uns anos a mais que eu. Era linda. Coisinha branquinha com olhinhos cor de qualquer coisa boa. Eram castanhos. Olhinhos que ficavam bem naquela sombra de árvore do pátio. Um dia ela me perguntou do outro lado do muro como se chamava algo em alemão. Eu perguntei o que ela queria saber, não me vinha nenhuma palavra assim, de sopetão. Ela pediu: hm... fogão! Eu havia me esquecido de meu vocabulário alemão, desci da cadeira e fui para casa perguntar pra minha mãe. OFEN? Notei que sabia a palavra, mas que de tanto querer impressionar, tinha me esquecido...

Tinham me proibido de subir na escada ou na cadeira: sujava a cadeira e a escada era perigosa, podia cair e quebrar a cabeça. Pulei para o alto algumas vezes para verificar se ela estava do outro lado do muro. Não estava. Voltei para casa e pedi se podia usar o telefone. Pra quê, quiseram saber. Quero ligar pra vizinha. O quê? Não pode, disse minha mãe. A tia interveniu dizendo que podia e já foi me dando o número. E ordenou que eu falasse "você" e deixasse o "tu" de lado. Disquei o número, me achando o máximo. Ela atendeu, acho que se achou o máximo também, "o sobrinho da vizinha está ligando pra mim". Fiquei misturando tu e você a torto e a direito. Já falava uma meia hora quando meu primo, impaciente, apareceu e brincou, se eu já tinha marcado um encontro, pois precisava usar o telefone - ou ia ficar caro. Final de conversa: não marquei encontro, nem vi mais os olhos da vizinha. A mudança tinha enfim chegado e nós íamos poder entrar na casa nova. E lá não tinha telefone. Ah sim. Eu queria ter uma namorada. Uma que fosse assim, minha vizinha, bonitinha, pra ficar ligando e falando. Uma pra fazer de conta que eu sabia falar alemão...

Então era dia da entrega de presentes. Fim de ano, fim daquele mesmo ano. Disse a meu pai que precisava ser um presente, não disse o preço, só falei que era pra uma guria. Menina. Mädchen. Lá foi ele todo alegre comprar presente. "Ele tá podendo", pensei, quando vi a boneca. Comprou uma bonequinha bonitinha mesmo. Até mais bonita do que aquela que deu pra Elaine. Elaine, minha prima de segundo grau, que antes disso tinha como boneca um sabugo de milho com pano de saco comprido, para fazer as vezes de saia. Ele adorava dar boneca para minhas amigas. E eu até achava chato.

O dia de entrega dos presentes, sim. Eu fiquei no meu canto, a caixa da boneca escondida num saco. Durante toda a preparação, não tinha deixado nenhum recado para meu amigo secreto. Brincadeira besta, ficar deixando recado pra amigo secreto... Já que ela não gostava de mim, não precisava brincar nem nada. Ia contar o que? Que meu pai adorava dar bonequinha? Perguntar se ela sabia que em outros lugares se brincava com sabugo de milho? Sua riquinha, você sabia como é cacho de uva, como é tirar leite de vaca e como um chiqueiro fede? Sabe como é ter saudades? Mas ela era burguesa? Ela era mais rica que a mocinha negra que tinha um barrigão, barriga d'água e que tinha medo de um cara tão branco quanto eu. Carla devia ter dinheiro, sua mãe a levava de carro e ela era loira. Ah, ela comia lanche, a mãe dela dava dinheiro pra um lanche e um refri. Gente loira geralmente tem dinheiro. Não é que nem esse pessoal, que não tem dinheiro para o café da manhã, vêm. Não que eu jantasse, pois em casa sempre tivemos lanche de noite, às 6 da tarde e depois mais nada.

Carla veio com uma amiga. Ela ficara sabendo que eu era seu amigo. Secreto agora já não era mais. Veio em minha direção e me levantei. Afinal, os pais já vinham buscar seus filhos e a brincadeira do amigo secreto estava acabando. A fantasia caíra. Bastava ficar ali parado. Tinha de entregar o presente. Quase que me esquecia! Tirei a caixa de dentro da mesa e a entreguei dizendo "taí". A amiga dela, uma que parecia com a Lady Diana e que eu também achava linda, mas muito produzida, adorou e soltou um gritinho. Carla não entendeu de onde surgira aquela boneca e me entregou algo, seu presente.

Dezembro chove às vezes um pouco frio em São Paulo. Principalmente quando não se toma café da manhã, nem se prova nada da festinha de despedida de ano. Meu pai me buscou e quis saber como foi, o que eu ganhei. Mostrei a caixa de bis. Ele perguntou se podia pegar um. Puxei a caixinha e fiz que não e perguntei se podia comer antes do almoço. Ele falou que eu podia fazer o que eu queria e ligou o motor do Passat. Dei uma mordida.