22 de agosto de 2013

O PEIXE QUE UIVAVA

            Ele foi visto pela primeira vez na noite em que a chuva torrencial começou. Ninguém sabia de quem era, nem se ele havia vindo dos lados da lagoa insólita ou da rodovia da mesmice. Ora ia em direção da lagoa, ora virava-se e tomava o rumo oposto, para a rodovia. 
 
A reação ao vira-lata era nula, pois se esperava que ele um dia seguisse o rumo para um dos dois lados e acabasse tal qual um cachorro como muitos outros da lagoa ou um cadáver para a fome dos urubus. Por ele continuar ali na cidade, uns poucos até o condenaram. Mas estando todos no rumo que a vida toma, nos afazeres diários ou em direção de suas casas, chegando a algum encontro importante não-se-sabe-porque, as condenações não passaram de uma ou outra frase sem maior importância. Vira-lata é mais coisa do que ser vivo. De modo que, ignorado, soube ignorar, mostrando sua língua salivante e um tanto suja de terra ferruginosa
 
Quando o aguaréu não deu mais chances e todos os transeuntes sumiram, a fim de se salvarem, tudo ficou ainda mais fácil para o cachorro. Ele decidiu se plantar no meio da rua e aguardar o fim da torrente. Enrolou-se em torno de si e ficou imóvel.
 
Choveu sete anos ao todo. Comecei a marcar no meu calendário quando notei, que das paredes de casa começaram a aparecer pingos condensados. E os dias se foram, lentos, mas convictos.
 
Ao final das chuvas, pouco tempo ficou para tristes pensamentos. Pouco tempo para o luxo de pensar em si. Todos averiguavam os danos causados. As casas abandonadas tinham antigamente armários, janelas, persianas, agora tinham peixes mortos, cadáveres de marrecos e garças. Onde antes um tapete simples, agora lama e terra. 
 
E poucos viram o cachorro levantar a cabeça, olhar para trás, como a espreguiçar-se. Depois,  à direita e à esquerda, observou. Havia valetas em ambos os lados da rua, por onde o rio de água turva correu carcomendo o pavimento, e desta forma protegendo o cachorro da enchente. Ali, no meio da cidade e no centro da rua, ele ficara intacto. À margem de tudo, pois ninguém mais o notava, tomados pelos cuidados com seus pertences deixados nas casas ou o que a chuva abandonou para contar história. 
 
Foi a família Piero, do circo que pegara fogo no verão antes das chuvas, que primeiro se atentou ao fato dos pelos do cachorro terem caído durante o chuvaréu. As crianças, cheias da tragédia dos adultos, prontamente começaram a passar suas mãos na pele canina, brincando com ele. Ele não apenas estava sem pelos, mas também com outro tipo de pele. Eram escamas. 
 
Atrás das crianças, alguns adultos viram o cachorro. Para a surpresa de todos, quando ele se levantou e se espreguiçou, mostraram-se barbatanas entre os membros e o dorso; e ao receber um prato com água, para beber, ele fez movimentos de boca como um peixe e pulou para dentro.
Quando as forças do exército vieram com mantimentos e foram consertar provisoriamente os pavimentos da estrada, ficaram sabendo da novidade. Acabaram achando-o em uma apresentação de circo: "o peixe que sabe uivar". Ficou claro que o peixe era um fenômeno biológico. Esse peixe seria prato cheio, pensavam os cientistas, e todos já se perguntavam quando iriam capturá-lo, para fazerem experimentos, gravarem o DNA e todas essas coisas.  
 
Foi Tchuí Piero, o caçula do circo, quem, cheio de medo, largou por fim o peixe no rio: melhor entregá-lo à natureza, do que às revistas de biologia e às catacumbas de espécies, pensou. A partir deste dia não se viu mais o cachorro-peixe. Tchuí o apelidara de Taínha: Taínha Piero, o Peixe que Uivava. Até que um dia um publicitário o achou no Orkut.
 
 
Revisão Vana Comissoli. Todos Direitos Reservados pelo autor, Udo Baingo.